São Paulo 450 Anos
Poética da Urbanidade - Estudos interculturais
Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência
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Materiais para as discussões do Colóquio Internacional de Estudos
Interculturais (2004)
BERLIM-SÃO PAULO NO PROGRAMA DE ESTUDOS INTERCULTURAIS "POÉTICA
DA URBANIDADE" PELOS 450 ANOS DE SÃO PAULO
URBANIDADE, FRAGMENTAÇÕES E RECONFIGURAÇÕES
Berlim, 13 a 15 de dezembro de 2002
Súmula
O conceito de urbanidade revela-se cada vez mais como sendo um dos mais importantes termos nas reflexões teóricas relacionadas com Ciência da Cultura da atualidade. A sua noção esteve à base de várias sessões do Congresso de Estudos Euro-Brasileiros da Academia Brasil-Europa, levado a efeito no ano de 2002 como encerramento do triênio de estudos científico-culturais motivado pelas comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil. Assim, discutiram-se questões de interações entre o rural e o tribal, conceitos que conduzem, sob vários aspectos, a problemas de urbanidade.
Em primeiro lugar, tornou-se evidente que o termo tem sido utilizado sem a necessária precisão conceitual. Um dos escopos do evento foi demonstrar que urbanidade não pode ser vista como prerrogativa da grande cidade ou de núcleos urbanos em geral. Indígenas provindos de aldeias do Brasil Central forneceram verdadeiras lições de urbanidade. Também os representantes da cultura caipira ou sertaneja demonstraram a consciência de que possuem e vivem antigas formas de urbanidade, cuja revalorização tornar-se-ia necessária. Com isso, tornou-se evidente que urbanidade não é apenas um produto da cidade ocidental ou resultado de processos de urbanização no âmbito da expansão européia. Ela não é apenas uma categoria de análises eurocêntricas da cultura; o conceito permite aproximações etnológicas ou antropológico-culturais e é um fenômeno histórico.
Deve-se fazer distinção conceitual entre urbanidade e outros termos similares. A oposição entre urbanidade e provincialidade não é suficientemente precisa. O mesmo pode ser dito com relação a urbanidade e ruralidade. Muito menos adequado seria ainda tentar dar maior precisão ao termo partindo de uma oposição entre sociedades urbanas de cunho ocidental e aquelas de outras sociedades. A urbanidade pode ser analisada tanto do ponto de vista da História, da Etnologia, do Folclore e de outras ciências humanas. Ela não significa o mesmo que civilização. Há pessoas e grupos que pertencem ao mundo "civilizado" e assim se consideram, mas que não demonstram possuir urbanidade. Urbanidade não é, porém, apenas um sinônimo de instrução nem de educação. Pessoas altamente educadas segundo determinadas categorias podem não possuir urbanidade. Este conceito ultrapassa fronteiras culturais e exige um tratamento inter-e transcultural na sua análise. Deve ser, portanto, alvo de estudos interdisciplinares.
Uma das grandes dificuldades da conceituação mais precisa do termo reside no fato de designar qualidades pessoais e qualidades de espaço. Fala-se assim, mais comumente, de maior ou menor urbanidade em cidades ou em bairros. Lamenta-se a perda de urbanidade em antigas cidades e a sua ausência em novas urbes. Procura-se recuperá-la através de estrategias de política urbana. Parece haver uma noção generalizada do que seja urbanidade segundo modêlos de vida urbana do século XIX. Há nostalgia de uma certa atmosfera vinculada a ruas movimentadas por transeuntes que passeam, que observam outros e que se deixam observar, que desfrutam da visão de edifícios e monumentos, que admiram artigos expostos nas vitrines. Procurando explicar essa nostalgia, alguns estudiosos salientam a influência exercida por narrativas de cidades do passado. Elas teriam criado visões românticas da vida urbana que se teriam fixado na imagem mental dos habitantes. Esquece-se, porém, que essas narrações descrevem situações urbanas criadas ou desenvolvidas, construídas, em parte, e, nesse caso, produtos de anseios e exigências existentes.
Quais seriam esses anseios, quais seriam as características da forma de vida desejada, quais seriam os elementos que a possibilitariam? Alguns autores salientam aqui aspectos relativos à movimentação e à densidade humana. Há, porém, ruas e praças altamente movimentadas e repletas de passantes que não são sentidas como impregnadas de urbanidade. Vias que se transformaram em meros corredores de tráfego humano e de veículos não garantem sensação de urbanidade. Aglomerações excessivas de pessoas podem até mesmo destruir condições de atmosfera urbana identificadas com o termo. Ruas e estradas de acesso, verdadeiros corredores construídos, transmitem, de fato, muitas vezes sensação de desconsolo, não de urbanidade. Há, porém, casos de avenidas e alamedas longas, retas, ladeadas também por edifícios que tornaram-se modêlos dessa qualidade urbana. Percebe-se, portanto, que o conjunto das sensações que se associam com o termo não pode ser determinado por critérios tão simples. Urbanidade não tem um relacionamento unívoco com densidade e com movimentação.
Teria ela porém uma relação com o critério da centralidade? Várias vezes tem-se levantado a questão da existência ou não de orientação dirigida a um centro urbano como sendo de fundamental importância para a criação de uma atmosfera de urbanidade. Essa hipótese, porém, é facilmente contestável. Há cidades radiais, planejadas com um centro bem definido, cujas ruas e praças não oferecem tal sensação. Por outro lado, há cidades e bairros reticulados, sem um centro espacialmente determinado, que transpiram urbanidade. Tem-se procurado, assim, substituir o conceito de centralidade pelo de focalização. Pontos de perspectivação criariam sistemas referenciais capazes de dar aos habitantes e passantes a sensação da existência de uma ordenação espacial perceptível, oferencendo orientações. Esses focos não necessitariam ser monumentos e obeliscos. Poderiam ser focos constituídos pela própria vida comercial, lúdica ou outros pontos de referência, até mesmo árvores ou cartazes. Haveria, assim, uma história das transformações referenciais na vida da cidade, e a análise dessa história ofereceria elementos para estudos de mutações nas qualidades urbanas dos espaços públicos.
Haveria, segundo essa argumentação, diferentes níveis ou intensidades de urbanidade. Ela seria dinâmica, mutável e transformável, tendo um cunho processual. A nível mais baixo, corresponderia ela ao espaço morto, desativado ou degradado. Aqui residiria a a principal questão a ser levantada na análise das grandes cidades e dos fenômenos urbanos de nossa época. A superposição de diferentes projetos e planos urbanísticos, muitos deles não coerentes e nem mesmo totalmente realizados, teria levado freqüentemente a situações de impasses, a situações urbanas liminares e críticas, à formação de vazios e à fragmentação da malha urbana. Segundo alguns, residiria justamente nessa fragmentação um dos centrais problemas urbanológicos do presente.
Berlim oferece um campo de estudos exemplar para estudos de fragmentação, de perda de urbanidade e de tentativas de reconstrução. Gravemente atingido durante a Segunda Guerra, grande parte de seu centro encontrava-se destruído em 1945. H. Scharoun, o arquiteto designado para orientar o desenvolvimento urbano da cidade, salientou, porém, que não apenas a guerra deveria ser considerada a causa do problema urbano. Esta residiria antes no processo de concentração já anteriormente iniciado e que teria levado à fragmentação da malha urbana. A visão que Scharoun tinha do caminho a ser seguido na reconstrucão de Berlim era quase que de natureza musical. Pensava num processo de harmonização dos diversos fragmentos da cidade, na criação de um todo capaz de integrar os bosques e lagos na malha urbana. Ora, o conceito de harmonia está filosoficamente intimamente ligado à harmonização de oposições, e aqui também se tratava de uma recuperação da cidade a partir do arranjo harmonioso de fatos urbanos díspares. Para ele, o estado de desintegração da metrópole não seria apenas negativo. Ofereceria uma chance única para uma nova ordenação. Posteriormente, porém, com a construção do muro, o estado fragmentário de Berlim intensificou-se e consolidou-se por anos.
Somente com a transformação da situação política da antiga República Democrática Alemã é que se tornou possível o reinício de trabalhos de reintegração da malha viária e de reconstrução de espaços vazios e degradados. Berlim transformou-se, assim, nos anos noventa do século XX, num dos mais interessantes laboratórios de idéias e de experimentações urbanas e arquitetônicas do globo. Superando limitações nacionais, a cidade transformou-se em campo de propostas internacionais e interculturais. Os concursos de arquitetura despertaram o interesse de políticos e da população. Discutidos amplamente, contribuíram para um novo fascínio por situações e qualidades urbanas.
O processo de recuperação de urbanidades perdidas é visto e tratado também sob o aspecto da política cultural. Em muitos casos, constata-se a predominância de conceitos de encenação urbana dirigida e controlada. Argumenta-se que essa encenação não pode ser apenas entregue à responsabilidade do comércio ou a desenvolvimentos espontâneos., devendo ser apoiada ou criada através de projetos culturais e desportivos. Alguns críticos já temem uma festivalização da cidade, uma perda de dignidade pela transformação do espaço urbano em palco de teatro. Também aqui torna-se evidente, portanto, que o conceito de urbanidade exige reflexões mais profundas. Levanta-se a necessidade de um repensar da condição urbana nas suas relações com a mistura de funções e na sua adaptabilidade ao meio ambiente.
As reflexões atuais acentuam, sobretudo, o fato de que o termo urbanidade deve ser entendido sobretudo no sentido de uma forma de comportamento educado e de disciplina dos procedimentos que impregnam a vida. Tratar-se-ia não da cidade ou de situações arquitetônicas e espaciais em si. Construções ofereceriam apenas as condições materiais para o desenvolvimento do tipo de vida caracterizado por urbanidade. A urbanidade seria resultado de um determinado tipo da vida ativa de seus habitantes. Segundo conceitos há muito discutidos na filosofia, a vida ativa não poderia ser considerada sem as suas relações com a vida contemplativa.
As condições oferecidas pela cidade para a caracterização da vida ativa variam de acordo com a época histórica e nas diferentes culturas. A qualidade da vida ativa que poderia ser caracterizada com o termo urbanidade, porém, dependeria do tipo de sua dependência relativamente à vida interior de seus habitantes. Sendo a vida ativa uma vida primordialmente sensorial, encontraria possibilidades de fruição no mundo externo. Possibilitá-los seria um dos objetivos da cidade construída. A urbanidade apresenta-se como sendo um problema da cultura e das relações interculturais.