São Paulo 450 Anos
Poética da Urbanidade - Estudos interculturais
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Materiais para as discussões do Colóquio Internacional de Estudos
Interculturais (2004)
MESSINA- SÃO PAULO NO PROGRAMA DE ESTUDOS INTERCULTURAIS "POÉTICA DA URBANIDADE" PELOS 450 ANOS DE SÃO PAULO
A NAVE E A CIDADE RADIOSA DE LUZ
Messina, 3 de outubro de 2003
Súmula
Um dos modêlos de pensamento mais sugestivos das concepções urbanísticas
e arquitetônicas é o da nave ou o de um veículo em geral. Na análise
cultural de cidades, essa imagem merece particular consideração.
Ela é muitas vezes facilmente identificável em edifícios e planos
urbanísticos, outras vezes, porém, apenas subjacente a soluções
de ordenação do espaço. Possui, porém, sempre, uma potencialidade
simbólica que dá margens a múltiplas interpretações.
Sabe-se, por exemplo, que Le Corbusier fascinava-se por veículos
e, em especial, pelos navios transatlânticos. Esses navios lhe
pareciam modelos de funcionalidade. No período do "Esprit Nouveau",
Le Corbusier não cessou de exaltar os meios de transporte, em
particular os vapores. Ele entusiasmava-se sobretudo com a idéia
de que milhares de passageiros conviviam nessas naves por várias
semanas. A partir daí, desenvolveu, pelo que parece, a idéia da
unidade residencial, aplicada a soluções urbanas, tais como em
Marselha.
Já na primeira obra teórica de maior porte e relêvo de Le Corbusier,
o "Vers une architecture", de 1923, fica evidente o significado
exercido por veículos no seu pensamento. Assim, surge aqui o confronto
entre o Partenão de Atenas e um automóvel, comparação aparentemente
absurda e que apenas pode ser compreendida a partir da argumentação
do arquiteto. O Clássico surge aqui como característica de um
pensamento arquitetônico orientado segundo a lógica e a razão,
no qual a estrutura e a função surgem como determinantes da forma,
o que na época industrial apenas o desenvolvimento técnico parecia
poder oferecer.
Sob esse pano de fundo, compreende-se a tão difundida e criticada
afirmação do arquiteto, segundo a qual a casa seria uma "máquina
para morar". O postulado que sempre é lembrado no estudo de suas
concepções é o de que a forma segue à função. Assim, os critérios
são oferecidos sobretudo pela tecnologia e pelo desenho industrial.
A partir desse postulado pode-se também compreender o fascínio
exercido pelos grandes navios no pensamento de Le Cobusier. Na
arquitetura dessas cidades flutuantes, nada parece ser supérfluo;
não é uma forma pré-concebida que determina o projeto naval, mas
sim a função e a economia de sua distribuição que determina a
forma. As diversas partes de um navio, as escadas em espiral e
corredores laterais, a higiene, salientada pela pureza do branco
da pintura, tudo sugeria uma nova estética que poderia e deveria
ser aplicada na construção de cidades e em edifícios. Para Le
Corbusier, um vapor transatlântico possuia uma arquitetura pura,
limpa, clara, sadia. Era o exemplo modelar daquilo que deveria
superar uma visão arquitetônica guiada por "estilos".
No seu tratado intitulado "Urbanisme", publicado em 1925, Le Corbusier
também afirma a necessária funcionalidade da cidade. A cidade
surge como um instrumento de trabalho, ou seja, um veículo de
trabalho. Ela se caracterizaria, assim, pela ordem e clareza,
e o urbanista deveria partir de análises funcionais, chegando
dela à determinação de formas. Entretanto, também reconhecia que
seriam as formas perenes da geometria que se derivariam das funções.
E essas formas estariam plenas de poesia.
Tomando veículos e navios como modêlos de edifícios e cidades,
Le Corbusier retomou uma das imagens mais sugestivas do pensamento
simbólico relacionado com coletividades. A barca sempre surgiu
como símbolo de uma comunidade de pessoas que realizam juntas
a sua viagem pelo mar da vida. Essa imagem é encontrada na mitologia,
nas constelações, no simbolismo religioso e na tradição popular.
Entretanto, tudo indica que Le Corbusier não considerou com o
devido cuidado o simbolismo dessa imagem, chegando, assim, a mal-entendidos.
O navio é, por excelência, um veículo dos mares, e o seu simbolismo
está relacionado com as relações da comunidade com o mutável do
mundo material. O homem vive, de fato, num mundo onde tudo se
movimenta, a sua vida na terra está sujeita ao tempo que passa,
de modo que é compreensível que a sua viagem pela vida seja comparada
a uma viagem de navio pelos mares. O símbolo da nave está relacionado,
assim, com o elemento água, o elemento que flui por excelência.
A ordem, a tranqüilidade e a segurança que reinam entre os marujos
de um navio são indicativos de uma vida espiritual que se orienta
não pela inconstância dos impulsos do tempo, mas sim por referencial
imutável. Assim, a barca é, na tradição religiosa, símbolo da
vida espiritual, da vida contemplativa. Esta é como a luz que
atravessa as águas e que pode ser vista também por aqueles submersos
no mundo temporal.
Baseando-se nas suas concepções na imagem do navio, Le Corbusier
orientou-se antes por princípios adequados à vida interior, mental,
não à vida sensorial, terrena. Aplicando essas concepções à construção
de cidades, concretizou o domínio da vida mental sobre a vida
sensorial. Esta transformou-se realmente em vida ativa, de trabalho,
sujeita aos ditames da vida interior. Assim, é compreensível que
a cidade terrena se transforme em veículo para uma vida de trabalho.
A vida sensorial se desensualiza. As idéias de Le Corbusier surgem,
sob esta perspectiva, como altamente espiritualizadas. É uma arquitetura
de luz, de luz do Logos na temporalidade da existência terrena.
Certas declarações de fundo religioso do arquiteto por ocasião
do seu projeto da Capela de Ronchamp tornam-se compreensíveis.
O cunho profano, secular da arquitetura e do urbanismo da Modernidade,
muitas vezes apontado por críticos conservadores, não se justifica,
assim. Os seus princípios possuem fundamentação profundamente
espiritual, quase que ascética, metafísica e ontológica, ainda
que muitas vezes não consciente por parte de seus propagadores.
A crítica que hoje se faz, e com razão, das conseqüências a que
levou o movimento moderno do urbanismo, deve partir da revisão
cuidadosa dessas imagens. Tratar-se-ia, aqui, de uma análise científico-cultural
desses fundamentos simbólicos para a revisão de posições urbanológicas.
Seria então necessário redescobrir o direito da vida sensorial
de viver a fruição do captável pelos sentidos, de não ser apenas
vida ativa como irmã subjugada da vida mental. A crítica dos preceitos
da Modernidade no urbanismo e na arquitetura levaria, assim, a
uma concepção da vida sensorial não como vida ativa, mas antes
como vida natural. Tratar-se-ia de uma aproximação maior à natureza
e de uma nova sensualização da urbe.
Antonio Alexandre Bispo