São Paulo 450 Anos
Poética da Urbanidade - Estudos interculturais
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Materiais para as discussões do Colóquio Internacional de Estudos
Interculturais (2004)
MYKONOS- SÃO PAULO NO PROGRAMA DE ESTUDOS INTERCULTURAIS "POÉTICA DA URBANIDADE" PELOS 450 ANOS DE SÃO PAULO
SEGUNDA FILOSOFIA E A CIDADE SÃ
Mykonos, 27 de setembro de 2003
Súmula
O relacionamento entre a medicina, a cultura e as artes, em especial
a música, tem sido objeto de numerosos estudos. Vínculos entre
a medicina, a arquitetura e o urbanismo, evidentes sobretudo na
edificação de sanatórios, hospitais e estâncias de repouso e de
tratamento, despertam no presente particular atenção, sobretudo
em círculos influenciados por culturas orientais. Do ponto de
vista culturológico mais amplo, porém, o assunto não tem sido
refletido com a necessária atenção. Tudo indica que reflexões
mais profundas não poderão ser encetadas sem uma consideração
conjunta dos elos existentes entre a medicina, a arquitetura,
o urbanismo e a música.
É notável o interesse por questões culturais em geral que se observa
em periódicos médicos. Trabalhos interdisciplinares caracterizam
sobretudo o campo de estudos da musicoterapia. Cursos de musicoterapia
desenvolveram-se de forma crescente, estabelecendo-se em várias
escolas superiores e universidades. O interesse pela matéria manifesta-se
cada vez mais em países latino-americanos. Programas, projetos
e cursos estão sendo desenvolvidos de forma diversificada e discutidos
em encontros e seminários. Poucas áreas de cunho musicológico-pragmático
ou pelo menos de pesquisa da música, no sentido lato do termo,
despertaram jamais comparável interesse por parte de órgãos educativos
e culturais. É um fenômeno notável e até mesmo curioso, considerando-se
o cunho experimental das iniciativas e mesmo as ressalvas científicas
que despertam em certos círculos médicos.
Há falta de estudos bibliográficos abrangentes dedicados a um
levantamento crítico e à sistematização da diversificada literatura
e das questões tratadas nas várias disciplinas envolvidas. Tais
trabalhos ofereceriam os pressupostos para estudos críticos e
teórico-científicos a respeito da legitimidade, da propriedade
e da qualidade das perspectivas e dos métodos empregados. A dificuldade
de obtenção de uma visão geral do estado das pesquisas na área
para a definição de critérios de julgamento e estabelecimento
de prioridades resulta não apenas da quantidade de ítens publicados
em órgãos de diversos ramos disciplinares e em diversos idiomas.
Essa dificuldade é produto sobretudo das fronteiras existentes
entre as ciências humanas e as ciências naturais, assim como entre
as áreas teóricas e aquelas da ciência aplicada.
Tem-se aqui, assim, não apenas um problema de interdisciplinaridade
interna ao sistema de ramos disciplinares dentro das ciências
humanas, mas sim um problema do sistema da divisão do saber e
de sua aplicação, da construção do edifício científico e da organização
universitária. Sendo essa divisão das ciências resultado de desenvolvimentos
históricos, de concepções de determinadas personalidades do passado
e de tradições por elas criadas, levanta-se naturalmente a questão
da sua propriedade e conveniência para o estudo de relações inter-
e supradisciplinares. Relevante para o estudo dessas limitações
criadas pelo próprio desenvolvimento do trabalho científico seria
um estudo da história da influência exercida por grandes pensadores,
pesquisadores e médicos, das correntes de pensamento e de ação
por eles desencadeadas, da dinâmica que desenvolveram nos vários
países, dos métodos que estabeleceram e das rêdes de contactos
sociais e profissionais assim tecidas. Trata-se, dessa forma,
de um problema da ciência das ciências (science of science), basicamente
- mas não exclusivamente - da sociologia das ciências, e, portanto,
de uma questão de fundamental importância para uma política científica.
Nesse estudo de base de concepções que relacionam a medicina e
a cultura, em particular a música e a arquitetura, a atenção principal
tem sido dirigida até o momento à consideração da linguagem simbólica
de mitos e da religião, assim como àquela do imaginário popular.
Os estudos comparativos da mitologia e da religião, o da Antiguidade
e a Antropologia Cultural foram até o momento as disciplinas condutoras
das reflexões. As imagens centrais vinculadas a concepções associadas
à medicina e à cultura necessitam ser consideradas dentro do repertório
global de imagens e símbolos, ou melhor, dentro de uma ordem simbólica
que sugere uma organização integral do sistema de conhecimentos
e de atribuições de significados ao cosmo e ao homem. Assim, representações
de imagens de deuses e vultos divinizados da história da medicina
não são consideradas apenas no seu relacionamento com o homem
e com o microcosmo, mas sim também nos seus vínculos com o universo
ou macro-cosmo. Por essa razão, as reflexões que se dirigem ao
relacionamento entre a medicina e a cultura, em particular à música
extrapolam o contexto medicinal de cunho individual. A medicina
diz respeito, nessa ordenação simbólica do repertório das imagens
do passado remoto e da tradição também à sociedade e ao mundo.
É, sem dúvida, uma concepção difícil de ser entendida na atualidade
e que necessita ser investigada e refletida com cuidado. Não pode,
porém, ser excluída dos estudos da simbologia.
Fundamento do sistema científico da Antiguidade e da Idade Média
residia na concepção das sete artes liberais. As disciplinas eram
divididas segundo dois critérios: lingüístico (Gramática, Retórica
e Dialética), matérias que constituiam o Trivium, e matemático
(Aritmética, Geometria, Música e Astronomia) -o Quadrivium. Nessa
divisão disciplinar, constata-se que a Medicina não aparece. A
razão desse fato foi questionada por antigos autores. A explicação
da ausência da medicina pode ser lida no livro V das Etimologias
de Isidoro de Sevilha. Nessa obra, fundamental para a transmissão
de conceitos da Antiguidade à Idade Média, o autor se baseou fundamentalmente
em Celio Aureliano, tradutor de obras médicas e Soriano (De morbis
acutis).
As matérias do Trivium e as do Quadrivium constituiriam apenas
pressupostos para a Medicina. O médico devia, segundo S. Isidoro,
conhecer a gramática, para poder entender e expor o que lia. Ele
devia ser hábil em retórica, para poder tratar com argumentos
convincentes os casos que teria que enfrentar. O mesmo podia ser
dito da dialética, pois esta o permitia, mediante o raciocínio,
aprofundar-se nas causas que provocavam as enfermidades e na medicamentação
para curá-las. O médico necessitava também conhecer as matérias
do Quadrivium. Com os conhecimentos de aritmética, ele podia contar
o número de horas que duravam os ataques febris e registrar periodicidades.
A geometria o permitia considerar a índole das regiões e zonas,
nelas assinalando o que deveria ser observado pelos homens. Por
fim, o médico devia ter conhecimentos de música, pois muitas eram
as enfermidades que, como poder-se-ia ler nos livros, tinham sido
tratadas com música. Assim, David liberara Saul de um espírito
imundo servindo-se da música. Também o médico Asclepiades devolvera
por ela a saúde a um enfermo atacado de loucura. Por fim, o médico
deveria também ter conhecimentos de astronomia, pela qual se examinava
o movimento dos astros e a evolução do tempo, variações que também
traziam alterações no corpo do homem.
Por essa razão, conforme salienta Isidoro, todas essas disciplinas
tinham apenas uma função preparatória para a medicina. Esta seria,
na verdade, uma segunda filosofia. Tanto a filosofia como a medicina
reclamariam para si o Homem na sua totalidade: a filosofia curaria
a alma, pela medicina se curaria o corpo. A medicina seria, assim,
uma filosofia do corpo. Neste conceito residiria o princípio,
o fundamento de sua concepção ("De initio Medicinae", Etymologiarum
IV, 13). A partir dela é que se entende a sua definição: "Medicina
est quae corporis vel tuetur vel restaurat salutem: cuius materia
versatur in morbis et vulneribus." ("De Medicina", ibidem IV,
1). Nessa acepção, a medicina englobava não apenas os remédios,
senão também a comida, a bebida, o vestido e o abrigo, ou seja,
tudo aquilo que serviria de defesa e proteção ao corpo com relação
a ataques e perigos externos.
É nesse contexto que a própria denominação medicina para a "segunda
filosofia" era compreendida. Considerava-se que a palavra era
derivada de "medida", ou seja, de moderação. A manutenção de um
meio termo era vista como necessidade imposta pela própria natureza.
Esta era mutável e sofreria variações e tribulações. Seria por
essa razão que o comedido daria prazer. Mesmo o excesso de medicamentos
levaria a distúrbios. A conseqüência de todo o excesso não seria
mais saúde, mas sim o perigo da mesma.
Essas concepções podem ser aplicadas à urbe e à cidade terrena.
Oferecendo proteção e abrigo ao homem, a urbe surge como objeto
também da segunda filosofia. Uma cidade sã deveria, portanto,
possibilitar ao homem viver em ambiente favorável à saúde de seu
corpo. Ela deveria ser, sobretudo, uma cidade caracterizada pela
medida, não por excessos.
Antonio Alexandre Bispo