Sao Paulo 450 anos São Paulo 450 Anos Lira Teatro Municipal
Poética da Urbanidade - Estudos interculturais
Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência
Akademie Brasil-Europa für Kultur- und Wissenschaftswissenschaft
© 2004 A.A.Bispo. Todos os direitos reservados.
» Reflexões em diversos contextos-------» Colóquio 2004-------» Academia Brasil-Europa-------» Instituto Brasileiro I.B.E.M.

San Pedro de Macoris
Materiais para as discussões do Colóquio Internacional de Estudos Interculturais (2004)

 

SAN PEDRO DE MACORIS-SÃO PAULO NO PROGRAMA DE ESTUDOS INTERCULTURAIS "POÉTICA DA URBANIDADE" PELOS 450 ANOS DE SÃO PAULO

NOVOS PROCESSOS INTERCULTURAIS DE SEGREGAÇÃO E FORMAÇÃO DE ENCLAVES
San Pedro, 28 de março de 2003

Súmula

 

O processo de formação e transformação de guetos na atualidade latino-americana assume particular relevância em estudos interculturais de urbanologia e música.

O termo designa ao mesmo tempo um fenômeno urbano e social, pois se refere à concentração de pessoas de particular identidade racial, étnica e/ou religiosa em determinado espaço.

O processo de formação dessas concentrações pode parecer que ocorre de forma espontânea, deve ser visto, porém, como resultado de ações dirigidas ou de mecanismos sociais que o obrigam. Ele se distingue da formação de enclaves, por exemplo no caso de comunidades de imigrantes europeus. Estas formações seriam segundo alguns estudiosos em geral transitórias e levariam à formação de enclaves culturais aceitos conscientemente por aqueles que a ele pertencem.

Nos estudos culturais tem-se dado alguma atenção ao papel relevante desempenhado pela música nos guetos definidos racialmente das grandes cidades americanas, sobretudo na de africanos e seus descendentes. Tudo indica, porém, que a distinção entre processos de formação de guetos e de enclaves necessitaria ser refletida de forma mais diferenciada.

A constituição de guetos está historicamente relacionada com a segregação de judeus em cidades cristãs. O termo está intimamente vinculado com um processo de insularização, uma vez que foi o nome da ilha destinada em 1516 por Veneza para ser bairro de judeus. A segregação de judeus está profundamente enraizada na história do Cristianismo e os seus fundamentos devem ser procurados no complexo conceitual e na ordem simbólica da cultura, também transplantados para as Américas.

Se uma situação de gueto é definida pelo critério da obrigatoriedade de condições e de forças que obrigam um grupo de pessoas à vida concentrada em determinado espaço, então tem-se aqui uma categoria conceitual que pode ser aplicada de forma muito mais ampla na análise cultural.

O desenvolvimento de polos turísticos destinados a europeus e norte-americanos em zonas litorâneas de países latino-americanos, sobretudo no Caribe, representam verdadeiros enclaves urbanísticos, sociais e culturais. Grandes áreas com edificações aptas a saciar exigências de moradia para pessoas socialmente privilegiadas, jardins e infraestrutura de lazer, centros comerciais próprios e construções fantasiosas que estilizam culturas nativas e exóticas, surgem como verdadeiras e imensas ilhas em zonas urbanizadas segundo princípios advindos da época colonial, com edificações modestas, rudimentares e pouca qualidade de vida devido à falta de condições materiais.

Esses enclaves diferenciam-se das cidades de tempo livre do passado, das estâncias balneárias e de centros de repouso tradicionais. Também estas foram cosmopolitas, possuiam porém, além da população transitória dos hóspedes, uma população local; muitas delas perderam com o tempo a sua função de apêndices e se transformaram em cidades com vida autônoma. No caso dos enclaves hoteleiros, porém, a função dos nativos se resume à de empregados que, após o seu trabalho nessas ilhas fechadas de consumo, retornam ao seu ambiente de dia-a-dia nas modestas localidades vizinhas.

Há, nessa situação, curiosamente, inversões de significados de espaços abertos e fechados. Os enclaves hoteleiros, cercados de altos muros, representam mundos fechados, em geral totalmente separados do mundo urbano envolvente, em geral auto-suficientes. Lembram, teoricamente, situações de guetos nas grandes cidades do passado, entretanto, não devem ser designados com esse nome. Ao contrário, é o mundo envolvente que, sendo encarado e compreendendo-se a si mesmo gradualmente como sem privilégios passa a assumir uma mentalidade de gueto, com todos os problemas de auto-estima daí decorrentes.

Ocorre, pelo que tudo indica, um processo de guetoização de grande parcela da população latino-americana, uma vez que se torna cada vez mais evidente o contraste arquitetônico e urbanístico dos enclaves hoteleiros e das aglomerações urbanas envolventes. Percebe-se, assim, que a questão de guetos, com a delimitação e a perda de liberdade de determinados grupos diz respeito antes a um processo sócio-cultural e econômico mais amplo. Trata-se de um problema muito mais abstrato do que o da formação urbana de territórios fechados.

Alguns estudiosos não desejam que o termo seja utilizado para designar apenas a concentração de pessoas de poucos recursos. Somente quando a essa situação se ajuntariam critérios de raça e etnia é que se poderia então falar de gueto; quando critérios étnicos intensificam os motivos econômicos de isolação então se poderia falar, de fato, de uma guetoização dos excluídos.

No continente americano parece que a guetoização está passando a ser vista de maneira diferente por aqueles que nela não tomam parte. Ela é encarada quase que cinicamente como um fato permanente da paisagem. Tais reflexões, encetadas relativamente aos Estados Unidos por Peter Marcuse, em debate desenvolvido pela Bauhaus, aplicam-se à América Latina, nas suas linhas gerais.(Muster und gestaltende Kräfte der amerikanischen Städte, in: Peripherie ist überall, org. W. Prigge, Frankfurt a.M., 1998, 42ss.)

Na ordem simbólica da cultura, implantada pelos europeus no continente americano, constata-se a diferença das noções de confinamento e de escravização. O termo confinamento diz respeito à reclusão da vida espiritual quando o homem se dedica totalmente à matéria. Essa situação de confinamento é conotada negativamente, pois se trata de libertar a mente submersa, dirigindo-a ao alto. Ao contrário, a escravização diz respeito à sujeição que a vida espiritual deve impor à vida terrena, sendo conotada positivamente.

Os territórios fechados de lazer nas novas urbanizações latino-americanas representam, nesse contexto, uma forma secularizada de vida espiritual. Com isso, adquirem uma imagem positiva e o seu confinamento passa a ser visto como resultado de um processo mais amplo, do homem que dirige os seus interesses ao mundo material. Os outros, porém, aqueles que se dedicam à vida de trabalho e que levam uma vida em sujeição, adquirem nesse contexto uma conotação negativa e a sua situação de quase escravidão passa a ser justificada.

Somente considerações mais profundas da ordem simbólica instituída da cultura permitirão, assim, análises mais diferenciadas desses novos problemas urbano-sociais.

Antonio Alexandre Bispo

retorno