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Poética da Urbanidade - Estudos interculturais
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Santiago de Cuba
Materiais para as discussões do Colóquio Internacional de Estudos Interculturais (2004)

 

SANTIAGO DE CUBA-SÃO PAULO NO PROGRAMA DE ESTUDOS INTERCULTURAIS "POÉTICA DA URBANIDADE" PELOS 450 ANOS DE SÃO PAULO

ANÁLISE DIFERENCIADORA DE ENCENAÇÕES RECONSTRUTIVAS DE IDENTIDADES
Santiago de Cuba, 22 de março de 2003

Súmula

 

A ordem simbólica de representações culturais instituída nas Américas no âmbito do processo de conquista e de conversão é revestida fundamentalmente de mecanismos de transformação de identidades. Esse mecanismo não foi apenas desencadeado no continente americano com os indígenas, mas sim também na África. Africanos que aportaram no Novo Mundo já haviam sido por ele atingidos, devido às ações de conversão empreendidas pelos missionários no continente africano ou pelo contacto com comerciantes. Na América, passaram a vivenciá-lo com toda a força vigente na sociedade colonial.

A transformação de identidades procedeu-se também aqui sobretudo através da participação em representações culturais de natureza simbólica. Com a repetição dessas danças, cortejos, autos, o repertório de expressões culturais foi assimilado e, com ele, todo um sistema de normas condutoras da cultura européia. As imagens inerentes a essa ordem simbólica foram internalizadas, trazendo consigo a desvalorização de todos os aspectos considerados característicos do homem terreno ou pretensamente entregue à vida sensual, apenas apto a ser disciplinado pela transformação desta vida natural em vida de trabalho sob o domínio da vida espiritual. Essa internalização levou à tomada de uma outra atitude, distanciada e negativa com relação à própria cultura. As tensões e frustrações daí decorrentes não poderiam ter deixado de atingir a auto-estima dos conversos.

As imagens urbanológicas exerceram nesse processo de conversão cultural um importante papel. Tratava-se, como salientado em diversos encontros, de disciplinar a vida considerada terrena, lasciva e sensual dos africanos - preconceitos fundamentados no simbolismo bíblico do Egito - através de sua transformação em vida de trabalho em sujeição à vida espiritual. Os africanos deveriam deixar a esfera em que viviam - a cidade terrena - e passar a viver na esfera espiritual - a cidade espiritual. A sua vida espiritual deveria ser purificada, ascendendo da esfera de submersão nas águas da temporalidade advindas dos sentidos.

O meio empregado para acostumar o converso a permanecer nesse estado ou nessa cidade de oração e contemplação foi o da implantação e incentivo do culto mariano. Sobretudo a prática das ladainhas e do rosário deveriam garantir esse viver na esfera contemplativa. Maria, sobretudo na referência devocional à sua Purificação, e na denominação cubana de Nossa Senhora do Cobre, passou a ser pedra angular da religiosidade. Representando o paradigma por excelência da vida espiritual purificada, relacionava-se profundamente com conceitos de cunho urbanológico, pois surgia como mãe da Igreja, representante da cidade celestial na terra. Por outro lado, a vida terrena, disciplinada e tornada ativa, correspondia antes à Santa Bárbara, devido à estória simbólica de seu encerramento na torre. Também aqui tratava-se de uma imagem claramente urbanológica, manifestada no seu vínculo com locais fechados, com fortalezas, prisões e minas. Esse encerramento significava a disciplina necessária a ser imposta à vida terrena, a sua limitação, através do trabalho e sujeição à vida espiritual.

Sendo a vida contemplativa oposta à vida terrena, é compreensível que se tenham criado formas de representação concretas dessas concepções de alta abstração. Assim, para o observador externo de difícil compreensão, Maria surge, nas formas de expressão da religiosidade popular, como oponente de Santa Bárbara. Na realidade, porém, trata-se aqui apenas de anti-tipos paradigmáticos da oposição da vida contemplativa e da vida ativa no mundo real. Essa oposição existente no Homem interior, correspondendo a esferas onde vive, e portanto a estados ou cidades, é inserida em complexo caracterizado por dinamismo, em contínua mobilidade. Trata-se quase que de uma dramatização de forças e potências da alma, da vontade, do logos, além da vita contemplativa ou mens e da vita ativa.

Com o declínio dos conhecimentos teológicos e místicos por parte dos observadores externos e do clero, essa profunda linguagem simbólica internalizada pelos africanos passou a ser considerada como estranha, apenas passível de ser explicada através de uma suposta sobrevivência de resíduos da religiosidade autóctone, misturados sincretisticamente com elementos católicos.

A procura de uma revalorização da cultura dos oprimidos, aspiração das mais nobres por parte de personalidades conscientes da falta de respeito humano inerente ao processo de escravização do passado, movimento revalorizador apoiado pela política cultural socialista, levou, porém, a profundos mal-entendidos. O desconhecimento dos fundamentos do pensamento teológico e da linguagem simbólica deu origem a construções históricas de gênese e desenvolvimento dessas formas de culto que não podem ser aceitas.

As encenações dessa construção cultural tem, certamente, uma função performativa de identidades e de criação de elos solidários entre os menos privilegiados. Sendo, porém, entendidas como processos reconstrutivos de identidades culturais e religiosas perdidas, apresentam-se com justificativas historicistas que podem mascarar contraprodutivamente imagens e conceitos, desfavorecendo uma real tomada de consciência libertadora.

Nesse processo de múltiplos mal-entendidos, fazem-se necessárias análises a vários níveis. Um aspecto importante é o já salientado exame das imagens de cunho urbanológico, pois constituem fundamentos simbólicos de percepção da urbe e da comunidade urbana. A descaracterização por desconhecimento dessa linguagem simbólica pode levar a várias consequências.

A verdadeira deconstrução do lamentável processo da escravização e de opressão de identidades somente pode ser esperada através de análises esclarecedoras. A simples substituição de nomes não modifica essencialmente as concepções a elas vinculadas de vida espiritual e de vida ativa, de cidade celeste e de cidade terrena. Com a africanização superficial de expressões e imagens nada se transforma no sentido mais profundo do complexo de idéias.

Antonio Alexandre Bispo

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