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Poética da Urbanidade - Estudos interculturais
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Santo Domingo
Materiais para as discussões do Colóquio Internacional de Estudos Interculturais (2004)

 

SANTO DOMINGO-SÃO PAULO NO PROGRAMA DE ESTUDOS INTERCULTURAIS "POÉTICA DA URBANIDADE" PELOS 450 ANOS DE SÃO PAULO

PROCESSUALIDADE DA CONQUISTA E CONVERSÃO NA ORDEM SIMBÓLICA
Santo Domingo, 16 e 27/28 de março de 2003

Súmula

 

Há estreito relacionamento entre a história da urbanização e a história da música nas Américas. Assim como em outras áreas das ciências da cultura, ambas não podem ser dissociadas da história da conquista do continente pelos europeus e da conversão dos indígenas, de sua colonização e evangelização. Ambas iniciam, em geral, na historiografia convencional, com o Descobrimento da América e com a chegada de europeus nas diferentes regiões. Somente aos poucos tem-se procurado reconstruir a história a partir de perspectivas do conquistado e converso.

Sabe-se, da arqueologia, que houve uma cultura urbana altamente diferenciada antes da chegada dos europeus, da existência de cidades, redes viárias e mecanismos de ocupação e uso da terra, assim como de culturas musicais indígenas altamente desenvolvidas. Esses complexos culturais são vistos, em geral, porém, como sendo expressões de um período encerrado da história, ou melhor, de uma pré-história do continente. A sua história começaria então com a sua integração no universo cultural do Ocidente cristão, quando tornou-se o "Novo Mundo" dos europeus.

As reflexões e os anseios de revisão histórica do presente, em geral encetados a partir de constatações etnológicas e antropológico-culturais da realidade, procuram e devem procurar superar essa visão histórica, voltando a sua atenção ao caráter processual da transformação cultural das Américas. Somente assim parece ser possível chegar a uma consideração coerente de fenômenos e processos observáveis ainda hoje em várias áreas da cultura e do saber, mais perceptivelmente na continuidade da expansão urbana, do "desbravamento" de regiões e de ocupação de terras.

Neste contínuo expansionismo da malha viária e do surgimento de novos núcleos manifesta-se não apenas a ação presente de mecanismos implantados com a Descoberta do continente. Ele deixa entrever, também, que a colonização ainda se encontra em andamento, que o processo de conquista da terra ainda está vigente. A conquista não foi, assim, um episódio encerrado dos primeiros anos do contacto euro-indígena. Ela representou antes um mecanismo posto em funcionamento e que ainda não foi interrompido ou revertido.

A conquista, porém, não pode ser estudada sem a conversão. Esta forneceu não apenas a sua justificativa político-histórica. Ela foi o seu próprio motor, pois determinou a configuração psicológica e a consciência ética de seus agentes e protagonistas. A conversão é parte da história missionária, deve ser considerada sob aspectos missiológicos, mas pertence também à história profana. Como um complexo de mecanismos acionados, ela não se encerrou com o batismo de povos indígenas. Mais adequado seria partir da concepção de um processo de conversão permanentemente em atividade, em contínua dinâmica, mesmo após a troca de identidade selada sacramentalmente. Pelos seus vínculos profundos com a conquista, o processo de conversão não seria apenas uma questão das ciências da religião, mas sim um fenômeno mais amplo, abrangendo todas os aspectos da cultura. Representaria, até mesmo, a chave para os estudos da Ciência da Cultura nas Américas.

É justamente a partir dessa processualidade da conversão que se entende, se elucida e se pode analisar os estreitos elos entre a música e a urbanização. Nos mecanismos desse revertir, revolver de mentalidades e culturas, a música exerceu um papel fundamental, como os estudos históricos das fontes o demonstram. Essa função primordial da música não pode porém ser entendida sem a consideração de sua inserção na nova ordem simbólica da cultura implantada durante a conquista espiritual.

Na primeira fase das relações inter-culturais, sem o conhecimento de línguas, a conversão se processou sobretudo através do exercício de um repertório de encenações culturais de fundamentação simbólica. A participação a princípio lúdica em danças dramatizadas e outras formas da cultura popular de origem medieval levou à assimilação inconsciente da nova identidade. A música foi aqui o veículo para a conquista emocional, para a coesão de comunidades em nova consciência de grupo, para a superação dos antigos elos de lealdade e formação de novos. Ela levou, com o seu fascínio, a deixar passar despercebido e a suavizar o profundo mecanismo de transformação cultural colocado em ação.

Esse mecanismo, próprio a essas expressões culturais da Idade Média, baseava-se na representação exagerada, grotesca, satírica do mundo não-cristão ou daquele em que o pecador havia recaído. A participação consumptiva nessas representações do grotesco, a sua repetividade, levaram automaticamente à mudança identificatória e à implantação de novas normas. Foi um processo de alteração cultural subconsciente, de alteralidade quase que insidiosa, uma vez que os seus novos protagonistas se tornaram gradualmente observadores externos e críticos da sua própria cultura, dela se envergonhando e passando a adquirir o orgulho de sua inserção na nova ordem das coisas.

Paralelamente a esse processo auto-xenológico, de questionável alheamento cultural crescente dos seus participantes e certamente apto a ser estudado sob o ponto de vista psicológico-analítico, processou-se sistematicamente o ensino e a educação, agora já não mais invertedor, mas transmissor de valores. Também aqui a música, e o seu exercício repetitivo por parte dos educandos foi veículo de particular relevância na formação e consolidação de hábitos mentais e senso de nova identidade comunitária. Ladainhas, com a repetição de breves fórmulas de fácil memorização, entoadas em atos escolares, domésticos, devocionais e em procissões, constituíram um dos principais gêneros desse processo performativo de identidades. Ambos os mecanismos porém, - o de inversão cultural a partir de representações grotescas da antiga cultura e o cultivo positivo da nova ordem através de métodos educativos - , estiveram sempre intimamente relacionados, pois resultam de um mesmo complexo de conceitos e normas.

Sabe-se que a ação missionária incluiu procedimentos de formação de aldeias, de "descimentos" e de "reduções", ou seja, esforços de concentração de indígenas em novos núcleos e em novas comunidades. A criação de cidades e o processo de urbanização das Américas está assim claramente relacionado com a ação missionária. Esse processo não foi, porém, apenas desencadeado pelos propagadores da religião. O foi também pelos conquistadores e colonizadores, presos a modêlos de pensamento do que seria a cidade e a ocupação de terras para o trabalho, modêlos implantados de forma dirigida ou desenvolvidos espontâneamente. Assim como também cultivavam as formas lúdicas, para-litúrgicas e litúrgicas da tradição religiosa, transmitindo o repertório cultural de tradição medieval aos povos com os quais se confrontavam, da mesma forma implantaram concepções do urbano imbuídas de carga simbólica.

Também nas Américas o processo de transformação mental e cultural inerente à conversão está intimamente relacionado com os conceitos de vida e de cidade. Fundamento desses vínculos é a distinção entre a vida natural ou terrena e a vida espiritual. A relevância dessa distinção para os estudos euro-americanos não pode ser suficientemente salientada.

Ambas podem ser até hoje constatadas, sobretudo na tradição do pensamento místico de cunho afro-americano, de forma personalizada, como se fossem duas irmãs, intimamente ligadas entre si, porém de oposto caráter. Todo o sistema conceitual parece estar dirigido fundamentalmente à inversão das relações de predomínio e poder entre essas duas irmãs.

Segundo os conceitos aqui transmitidos, no homem por assim dizer natural, que vive segundo as necessidades e os prazeres de seu corpo e sentidos, como os outros seres animados, é a vida carnal, sensorial que domina absolutamente a sua vida interior. A sua vida espiritual estaria aqui em posição de sujeição, como se estivesse presa, prostituída, imersa nas águas das correntes que o homem recebe do mundo exterior através de seus órgãos dos sentidos.O homem se situa por assim dizer numa esfera terrena, habita numa cidade caracterizada pelos conhecimentos do sentido e portanto sensualizada. Essa é a Jerusalem terrena da alegoria bíblica. O modêlo, porém, a ser seguido seria o inverso, ou seja, o da sujeição da vida animal à vida espiritual. O homem deveria situar-se nessa outra esfera, habitar nesta outra cidade, na Jerusalem celestial. Nesse estado mental, a outra cidade a que se vincula, a terrena, passa a ser apenas aquela disciplinada da vida ativa, a do labor e do trabalho.

O processo de conversão instaurado nas Américas e que se automatizou como motor da dinâmica cultural reside fundamentalmente na superação da vida natural dos indígenas, nivelada, em sistema de idéias simbólico-antropológicas àquela de homens que vivem sobretudo segundo os sentidos e que pertencem, assim, a uma cidade terrena. Esse processo inclui também o contínuo cuidado de manutenção do predomínio da vida espiritual ou da cidade espiritual por parte dos conversos.

Tem-se, aqui, conceitos e imagens que não poderiam deixar de impregnar profundamente a criação, a vivência e a transformação das cidades. Um grave conflito interno é inerente às cidades e ao processo urbanizador no continente americano.

Antonio Alexandre Bispo

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