São Paulo 450 Anos
Poética da Urbanidade - Estudos interculturais
Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência
Akademie Brasil-Europa für Kultur- und Wissenschaftswissenschaft
© 2004 A.A.Bispo. Todos os direitos reservados.
» Reflexões em diversos contextos-------» Colóquio 2004-------» Academia Brasil-Europa-------» Instituto Brasileiro I.B.E.M.
Materiais para as discussões do Colóquio Internacional de Estudos
Inter-Culturais (2004)
VOLOS- SÃO PAULO NO PROGRAMA DE ESTUDOS INTERCULTURAIS "POÉTICA DA URBANIDADE" PELOS 450 ANOS DE SÃO PAULO
NATUREZA DUPLA DA CIDADE E A CIDADE VELHA
Volos, Tessalia, 21 de setembro de 2003
Súmula
A existência de duas cidades intimamente relacionadas entre si num complexo dinâmico, - a cidade da luz e a cidade material - , representa uma noção fundamental na mitologia, na teologia e na ordem simbólica da cultura transmitida aos países colonizados.
Essas imagens surgem, como salientado em várias discussões, freqüentemente representadas de forma personificada. Elas se referem a estados ou "mundos" interiores do homem, à vida mental e à vida do corpo.
A natureza dupla na simbologia do urbano explica-se, assim, pela
sua natureza antropomórfica. Na realidade, a duplicidade se refere
ao homem, que pode demorar-se na cidade espiritual ou viver na
cidade terrena.
Na simbologia mitológica, a natureza dupla do homem é expressa
com a figura do centauro. A região por excelência dessas criaturas
foi a Tessália. Esses seres mixtos desempenharam papel de extraordinária
relevância no conjunto dos antigos mitos. Dentre eles houve também
um centauro de grande sabedoria, também vinculado à medicina e
à música. Foi Chiron/Quirão, um mestre, verdadeiro pai espiritual
de grandes heróis, entre eles Hércules e Esculápio.
O símbolo do homem com a parte inferior do corpo em forma de cavalo
é perfeitamente compreensível, uma vez que permaneceu vivo na
tradição cristã até o presente. Para compreendê-lo, deve-se partir
das elucidações dadas pelo Apóstolo Paulo. O homem demonstra a
esfera na qual vive interiormente pelos frutos que produz. Se
manifesta, nas suas obras, ódio, ressentimentos, produzindo conflitos,
é porque vive interiormente numa esfera determinada por aquilo
que recebe através dos sentidos. Ele é preso à matéria e sujeito
aos elementos. Se, porém, as suas palavras manifestam paz, bondade,
amor e sabedoria, é porque vive em esfera espiritual, produzindo,
assim, frutos do espírito. O homem tem, porém uma natureza dupla,
gerando ou obras da carne - a sua natureza inferior, simbolizada
pelo cavalo -, ou frutos do espírito. O grande modêlo mitológico
do centauro que produzia frutos do espírito foi o já citado Chiron,
o grande modêlo bíblico que gerou uma obra da carne e posteriormente
um fruto do espírito foi Abrahão. Nesse caso, a obra da carne
foi Ismael, o fruto do espírito foi Isaque. Como o Apóstolo Paulo
elucida, trata-se aqui de uma alegoria. O mesmo diz respeito às
duas mães, ou seja, às respectivas esferas ou "cidades" com as
quais Abrahão conviveu, Sara e Hagar.
O Velho modelar seria aquele que, retirando-se dessa terra de
centauros, colocar-se-ia numa posição de exemplaridade, tornando-se
um condutor. Se Quirão, o instrumentista, foi o mestre ou o pai
de uma comunidade que, apesar de todo o ensinamento continuava
a produzir frutos duplos, Esculápio foi aquele que, embora pertencente
a essa comunidade, procurou regenerá-la de seu mal, conduzindo-a
para outra esfera, a espiritual. Na linguagem sincrética do helenismo
tardio Quirão corresponde a Abrahão, Esculápio equivale a Moisés,
aquele que levou Israel a atravessar o Mar Vermelho. A correspondência
entre Moisés e Esculápio se manifesta também no símbolo da serpente,
uma vez que Moisés levantou a serpente de ferro, símbolo considerado
como pré-figuração da cruz.
Segundo a mitologia, os centauros descendiam de Ixion e de Nephele.
Ixion foi o paradigma do homem sem respeito à esfera espiritual,
pois pretendeu unir-se à Hera, esposa de Zeus, sendo por isso
condenado a estar perenemente preso a uma roda de fogo. Os seus
filhos são portanto aqueles que não se conseguem libertar desse
fogo interno, presos continuamente a um movimento giratório, um
verdadeiro purgatório causado pelos diferentes e mutáveis objetivos
que almejam. É compreensível, assim, que o símbolo do centauro
haja desempenhado importante papel na linguagem de imagens da
cultura cristã, significando o homem da geração pré-diluviana
originado da mistura dos filhos de Seth com as filhas de Caim,
ou até mesmo o homem carnal e pecador.
No simbolismo dos astros, os centauros correspondem ao signo do
Sagitário, representado que é por um desses seres. O homem desse
signo teria, assim, as características de um centauro, sendo movido
interiormente por um fogo espiritual que, em situação negativa,
o conduz a mutáveis objetivos, jamais alcançando a paz. O modêlo
excepcional desse tipo é representado pela constelação do Centauro,
identificada como Quirão ou, na interpretação cristã dos céus,
com Abrahão na sua qualidade de pai de Isaque. Nessa constelação
encontra-se o Cruzeiro do Sul, símbolo das virtudes cardeais que
o homem/centauro deve seguir tal qual Quirão.
Segundo o mito, o homem condenado a estar preso a uma roda viva
de fogo, ou seja, a ser um centauro, foi castigado por Zeus ou
Júpiter. Júpiter, significativamente, é considerado como sendo
o "regente" do signo do Sagitário. Ele surge para o homem com
natureza de centauro como sendo um verdadeiro dominador, um déspota,
um tirano ou demônio que o obriga a uma vida de contínua movimentação
e falta de paz. Se esse homem, porém, renunciar aos desejos impostos
pelo fogo da vontade que o consome, obrigando-se à estabilidade,
liberta-se do jugo desse deus, ou melhor, este se transforma em
arconte, em administrador de sua vida. Este é o sistema dos "arcontes
da luz" elucidado pelo Apóstolo Paulo e base de diversas expressões
religiosas e místicas presentes na tradição popular da América
Latina até hoje. Esse homem torna-se capaz de redirigir o seu
fogo interno, a sua energia criadora.
Nesse conjunto de concepções pode-se falar também de uma Cidade
Velha, tanto a Cidade Velha espiritual como a Cidade Velha terrena.
Esta última seria a cidade sem urbanidade, simbolicamente a cidade
de homens-cavalos, de centauros ambiciosos e cheios de presunção,
eternamente imersa em movimento desordenado, sem sentido e orientação.
Antonio Alexandre Bispo