Academia Brasil-Europa© de Ciência da Cultura e da Ciência Akademie Brasil-Europa© für Kultur- und Wissenschaftswissenschaft
»_português---------»_deutsch---------»_impressum---------»_contato---------»_Brasil-Europa.eu
TRADIÇÃO, ESPONTANEIDADE E PRÁTICA DE EXECUÇÃO (1971)
Antonio Alexandre Bispo
A riqueza musical do Brasil, surpreendente sob todos os aspectos, permanece oculta aos olhos metropolitanos, habituados a um nivelar vago das populações do interior ao operariado dos subúrbios com a sua aparente esterilidade musical. Entretanto, a transformação lenta de um mundo não industrializado ou em estágios primários de industrialização cria um rítmo quase que biológico de desenvolvimento e vida, dando possibilidades de sedimentação de uma "reserva" cultural adquirida pelos mais variados meios de transmissão e difusão culturais, num passado remoto ou não, continuamente trabalhada, adaptada e enriquecida pelo homem. O estudo dessa "reserva", de grande interesse histórico, oferece também importantes elementos para a compreensão da cultura popular. Essa "reserva" não é estática, mas sujeita à dinâmica viva das transformações criada pela ação contínua do homem. Não vamos ter, aqui, a intenção de investigar as razões históricas da ocorrência dos fatos, procurar as fontes documentais e discutir os motivos sociais e econômicos responsáveis pelos acontecimentos. Não procuraremos, também, tratar das causas e das razões que fundamentaram as transformações dirigidas, tais como as disposições litúrgicas que causaram o desaparecimento das orquestras de igreja e a revalorização da música vocal de coros masculinos, da música de órgão e do canto gregoriano no início do século ou a abolição de quase toda a prática sacro-musical de natureza artística no presente. Tais questões, algumas já tratadas por vários autores, não cabem, senão de passagem, no âmbito desta conferência. Partimos, sempre, das observações efetuadas na realidade do presente: aquilo que está acontecendo, o que existe e o que se transforma. O passado só será considerado enquanto vivo, na prática ou na lembrança do meio estudado. Estas considerações se baseiam em observações feitas e na experiência vivida durante a Semana Santa de São João del Rei. Não vamos porém tratar de expressões culturais da tradição popular, ou seja, de folclore, como em geral é compreendido, mas sim de expressões culturais "eruditas", porém de grande interesse para o estudo da cultura de "expressão espontânea", como o folclore é conceituado segundo alguns estudiosos. Vamos ultrapassar fronteiras e limites disciplinares, portanto, procurando demonstrar como é artificial uma distinção demasiadamente rígida entre as ciências da cultura. Em São João del Rei temos a surprêsa de constatar uma vida musical intensa, tanto nas igrejas locais quanto nas apresentações realizadas no teatro e nas salas de associações. O mais surpreendente é constatar que essa vida musical não é artificial, mas sim fundamentada numa tradição musical própria, carinhosamente cultivada pelos músicos e apreciadores, que guardam a memória de seus grandes músicos do passado, cujas obras continuam a ser executadas. Não é, porém, com a história da música local com que aqui nos ocupamos, mas sim com a existência, para habitantes de metrópoles inesperada, de uma continuidade na prática da execução instrumental e da interpretação vocal. Essa continuidade é fundamentada, sem dúvida, no tradicionalismo da vida local, não é por isso, porém, que a prática de execução seja estática, historicista ou museal. Ela é extraordinariamente viva e maleável, adaptada que é às condições e às disponibilidades instrumentais e vocais. Precisaríamos, talvez, definir melhor quais seriam as características verdadeiramente tradicionais e quais seriam aquelas circunstanciais. Isto somente poderá ser feito à medida que as pesquisas se desenvolvam, talvez por elementos da própria comunidade. Os cantores leem em geral nas antigas partes, originais ou cópias, escritas muitas vezes nas claves antigas, mas o fato é que quase todos sabem o repertório de cór. Observamos sempre intensa participação íntima por parte dos membros do coro, entusiasmando-se ou comovendo-se com a música e dando expressão a seus sentimentos inclusive através de gestos e movimentos corporais. A qualidade vocal de muitos cantores é variável. A Sociedade de Concertos Sinfônicos promove saraus onde os artistas exibem até mesmo extraordinários dotes vocais em canções eruditas e populares antigas e árias de ópera. No coro da Igreja, entretanto, tomam parte algumas vozes cansadas (talvez pelo esforço excessivo) e "abertas". As composições sacras, que denotam grande influência italiana, apresentam partes solísticas comparáveis às mais difíceis árias de óperas. São melodias compostas de forma a facilitar a memorização por parte dos cantores e ouvintes. Para aquele que vem de fora, é sobretudo o resultado sonoro das obras coro-orquestrais de igreja o que causa inicialmente surprêsa. O ouvinte fica estupefacto com o que acha ser produto de má direção, poucos ensaios, instrumentos desafinados, vozes corais de pouco cultivo ao lado de extraordinários solistas, exageros de expressão e aparente pouca seriedade dos participantes do coro e orquestra. Aos poucos, porém, o visitante vive uma inusitada re-educação de seus ouvidos. Ele passa a perceber uma outra espécie de valor qualitativo nas execuções, produto de um íntimo conhecimento das obras, do cantar de cór, de improvisações, de uma profunda sensação dos cantores e músicos de estarem "em casa" e de, assim, possuirem realmente as músicas que produzem como um bem cultural comunitário. Fica consciente, gradativamente, de que aquilo que lhe parecia caótico, confuso, barulhento e sem nível é, na verdade, uma preciosidade, um monumento vivo que guarda traços de um passado já desaparecido na maior parte das regiões do Brasil. Ele oferece a oportunidade única de penetrarmos numa esfera onde o erudito e o popular se entrosam, onde o erudito não é artificial. As obras dos compositores locais, que à primeira vista parecem ser de menor valor artístico, produtos de imitação de modêlos europeus de segunda categoria, transformam-se em preciosidades culturais e humanas, provas de uma inusitada cultura própria. Que diferença com relação às músicas nacionalistas interpretadas segundo critérios de qualidade europeus e norte-americanos das salas brasileiras de concerto! Aqui temos uma música "universal", que traz elementos claramente operísticos na sua escrita, mas que soa, porém, singularmente autêntica, profundamente "brasileira". Compreende-se, de repente, que deve ter havido uma quebra, uma interrupção da continuidade musical e da realidade sonora no desenrolar histórico da vida musical no Brasil, seja através de músicos formados no Exterior, seja através das reformas pouco sensíveis culturalmente das autoridades eclesiásticas, muitas delas também formadas no Exterior. Do ponto de vista do estudo da cultura popular, tais práticas vocais e instrumentais não podem ser entendidas como expressão de "decadência". Não cabe, no caso, julgar, lamentar ou exaltar. O objetivo deve ser constatar e tentar compreender. Vamos aqui tratar apenas de alguns aspectos da prática de execução e interpretação observada e vivida. Em primeiro lugar, consideremos o cantochão. Fala-se hoje, sobretudo após o trabalho do Pe. José Geraldo de Souza, muito de uma " contribuição do canto gregoriano para a música popular brasileira". Precisamos aqui, porém, constatar um fenômeno oposto: a contribuição da música popular ao canto gregoriano. Vamos considerar essa contribuição com base em alguns exemplos. Em primeiro lugar, observemos alguns trechos registrados nas cerimônias de Sexta-Feira Santa. Tem-se aqui uma singular alternância entre a música coro-orquestral e o canto do sacerdote. Cabe salientar que a orquestra se encontra no coro da igreja, acima da porta principal, enquanto que o sacerdote está distante, no altar. A alternância entre o canto gregoriano e a música instrumental e polifônica foi usual e conhecemos inúmeras obras mestras compostas para esse fim na história da música. No caso, porém, temos de constatar singularíssimos fenômenos. De quanto em quando produz-se uma dualidade modal-tonal, principalmente quando a intervenção do coro e orquestra resume-se a breves mas incisivas cadências, o que fortalece o sentido tonal. De repente, o próprio canto do sacerdote inclui uma cadência conclusiva, perdendo o seu caráter modal e demonstrando claramente a influência do apoio harmônico. O desenho melódico se modifica, aparecem grandes saltos intervalares, acentuados ritmicamente e dando origem a formações em tresquiálteras. Com isso, perde o rítmo livre, prosódico e adquire um caráter métrico. Ora, essa profunda influência do canto litúrgico pela música de coro e orquestra só pode ser explicada pela tradição. A repetição anual do mesmo repertório através das décadas e a formação local dos sacerdotes é que esclarecem essa simbiose. Assim, um canto transmitido pela Igreja e entendido por muitos como patrimônio imutável, é integrado orgânicamente na prática coro-orquestral tradicional e vice-versa. Talvez tenha sido o compositor, no caso também sacerdote, que criou uma obra, no século XIX, já adequada a formas particulares de interpretação do Gregoriano surgidas anteriormente e produzidas por anteriores produtos simbióticos. De resto, cumpre também salientar o contraste oferecido pelo fluir em legato da corrente melódica do Gregoriano com a interpretação coro-orquestral. Uma característica interessante da interpretação de obras corais é a freqüência de "staccati", executados de forma exageradamente curta, o que leva a uma completa desarticulação do texto. Este fato pode ser observado também e sobretudo nos motetos de procissão, como, por exemplo, no Moteto dos Passos de Martiniano Ribeiro Bastos, registrado no decorrer da Procissão do Senhor Morto. Uma especial consideração merecem as "Lamentações de Jeremias" ouvidas no Ofício da Manhã da Sexta-Feira Santa. Apesar de serem fundamentalmente baseadas nas lamentações gregorianas, são cantadas em terças por dois sacerdotes e apresentam interessantíssimas terminações, de intensa expressividade. Nessas cadências intermediárias e finais modifica-se o paralelismo melódico, aparecendo também outros intervalos. Segundo informações do Sr. Aluísio Viegas, arquivista local e profundo conhecedor dos hábitos e do patrimônio musical de São João del Rei, essas formas de cantar o Gregoriano são próprias dos padres naturais da cidade e que as aprendem oralmente. Segundo uma informação que recebemos, mas cuja veracidade não pudemos comprovar, esta forma de cantar foi transmitida por um sacerdote que esteve em Roma no século passado e que ouviu o canto da Capela Sixtina. Ora, se isto for verdadeiro, temos aqui a última sobrevivência de uma prática musical tradicional que foi abolida no Vaticano em fins do século XIX, no âmbito das reformas litúrgico-musicais. A extraordinária importância histórico-musical desse fato é evidente. Na realidade, porém, temos aqui uma preciosa sobrevivência de práticas antiquíssimas de execução vocal, o que nos leva às obscuras origens da polifonia medieval. Lembremos do "canto gêmeo" da Inglaterra, que na opinião de alguns historiadores muito contribuiu para o desenvolvimento da linguagem tonal por ter influenciado as formas de cantar da Europa Ocidental, que seguiam sobretudo o estilo organal em quartas e quintas. Ora, a ocorrência de cantos em terças não era só comum na Inglaterra, pois a conhecemos do populário musical de várias regiões da Europa, como o temos também no Brasil, por exemplo nas nossas modas de viola, certamente um procedimento recebido de Portugal. Tocamos aqui, portanto, num problema de grande relevância histórico-musical e da história do folclore musical, em questões já muitas vezes discutidas e que deram origem a diversas hipóteses e a teses muitas vezes contraditórias. Os sacerdotes de São João del Rei não devem ter aprendido essa forma de cantar conscientemente, mas sim de forma natural, de ouvido, pela tradição. Temos aqui, portanto, um verdadeiro monumento vivo, sonoro, que nos leva a um passado remotíssimo, supera a distância entre o canto gregoriano e as formas de cantopopular em terças populares, retira do canto gregoriano toda a impressão de algo externo à nossa cultura, "abrasileirando-o".Torna-se difícil então dizer se é o canto gregoriano aquele que contribui para a música popular ou se é essa que contribui para o canto gregoriano. Percebe-se aqui que esta questão está mal colocada, e que o problema deve menos ser visto em termos de "contribuições", mas sim de um ponto de vista mais amplo, de linguagem musical condicionada pelo contexto cultural global. Um verdadeiro exemplo de contribuição popular para o Gregoriano pode ser visto na singular prática de acompanhamento do canto do sacerdote por um grupo instrumental observada no ofício da manhã da Sexta-Feira Santa, com partes orquestrais e corais do "Ofício de Trevas de Quinta-Feira Santa" do Pe. José Maria Xavier. Nesse acompanhamento instrumental, as flautas realizam incríveis acrobacias melódicas para poderem seguir o canto do sacerdote no distante altar. Numa liberdade prodigiosa, a flauta vai ornamentando e seguindo a voz do padre. De quando em quando se encontram, mas logo cada qual segue à vontade. É por assim dizer todo um contraponto de espírito, um resumo simbólico da música brasileira: o canto estranhamente oriental do padre contra o rítmo e o melodismo ingênuo da flauta. Torna-se muito difícil a partir da execução tentar escrever o resultado sonoro metricamente em compassos. A concepção melódica e a sua estrutura são porém claramente compreensíveis. Estabelece-se uma verdadeira contraposição entre o espírito modal e o tonal, e a melodia improvisada da flauta adquire um caráter mixto, assumindo, na liberdade rítmica, uma fisionomia seresteira e modinheira.
(A.A.Bispo. Relato de observações da Semana Santa de São João del Rei. São Paulo: Nova Difusão 1971) ©Todos os direitos reservados
» zurück: Materialien