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APORTES DA HISTÓRIA DA ARTE À ETNOMUSICOLOGIA E ORGANOLOGIA: CURT SACHS (1972)
Antonio Alexandre Bispo
Na aula de hoje vamos tratar de alguns aspectos da obra de Curt Sachs, um nome que os Srs. conhecem da literatura publicada em espanhol e que faleceu em 1959, em Nova Iorque, com 78 anos. Nascido em Berlim, foi obrigado a deixar a Alemanha em 1933, por motivo das perseguições racistas da época. O pensamento de Curt Sachs só pode ser bem compreendido se considerarmos que ele estudou e se doutorou tanto História da Arte como História da Música. Já em 1917 foi nomeado membro da comissão de especialistas do Museu Real de Etnologia e, dois anos depois, diretor da coleção de instrumentos musicais. Como professor, atuou na Escola Superior de Música e na Universidade a partir de 1919. Após a sua saída da Alemanha, viveu em Paris até 1937, trabalhando no Musée de lHomme e dando aulas na Sorbonne. A partir de 1937, transferiu-se para os Estados Unidos, onde atuou na Universidade de Nova Iorque, até 1957, sendo também professor adjunto da Universidade Columbia. Curt Sachs deixou numerosas obras em vários campos, tais como música da Antiguidade, Organologia, Pré-História da Música, História da Dança, e Etnomusicologia. Característico dele e, em parte, de sua geração, foi a necessidade sentida de uma visão geral, sintética do material coletado, da construção ou reconstrução de um edifício dos conhecimentos. Para ele, as artes se relacionavam entre si de maneira indissociável, - ou seja, uma idéia hoje bem moderna, se pensamos na introdução da disciplina História das "Artes".... As Artes eram para Sachs a objetivação de um mesmo ímpeto da vontade em pedra, em cores ou em sons. Ele partia de paralelidades, por ex. da similaridade de expressão do movimento das linhas góticas e do contraponto, etc. É mais ou menos o que vai-se fazer, provavelmente, nessa tal disciplina "História das Artes"agora incluída no currículo. Mas Curt Sachs dizia isso no início do século! Ele partia das seguintes leis: 1) Lei da igualdade de expressão: épocas e povos só podem exprimir o mesmo espírito em todas as artes que criam, 2) Lei da representabilidade: Épocas e povos, que se expressam sobretudo visualmente, não se dedicam tanto à criatividade musical e vice-versa, 3) Lei da refundição: épocas e povos, que assimilam estilos estrangeiros, os refundem gradualmente segundo as suas necessidades e dão-lhes um cunho próprio, 4) Lei do deslocamento de fronteiras: estilos estáticos preferem as artes plásticas, estilos dinâmicos salientam mais a arte dos sons. O início e o fim dos estilos nunca coincidem. Através dessas leis, Curt Sachs achava que a música poderia ser englobada no âmbito geral da História da Arte. Uma de suas mais famosas obras, que marcou profundamente a históra da disciplina, foi publicada em alemão, em 1929, com um título que é difícil de ser traduzido: "Espírito e Realização (ou Vir-a-ser) dos Instrumentos Musicais". Esse trabalho teve dois objetivos. Para Sachs, os instrumentos musicais ocupam uma posição de suma relevância na cultura humana. Ele quis tratá-los com os meios da Musicologia Comparada e da Etnologia, fazendo deles objeto de estudo não apenas da consideração sistemática, mas sim também da História. A História iria desde a Idade da Pedra até a nossa época. Ela se interromperia apenas quando os instrumentos são desligados do amplo contexto das relações com a crença e com a vida. Com esse estudo, ele não quis resumir-se ao aspecto artesanal e musical, nem à sua evolução através dos tempos. Ele quis demonstrar como é que o instrumento musical estaria vinculado com a totalidade dos instintos e idéias do Homem. Sachs quis fazer uma História como Ciência Humana. Na introdução dessa obra, Sachs salienta, de princípio, a fascinação que sentia pelos instrumentos musicais. O pesquisador de música, que se dedica a uma arte tão passageira e inconcreta, tem, nos instrumentos, algo material, palpável, capaz de ser estudado científicamente. Até mesmo as épocas que não deixaram nada de sua música, deixaram-nos instrumentos como testemunhos. O estudo dos instrumentos, porém, não seria apenas uma tarefa para músicos e pesquisadores de música. Eles faziam parte originalmente de um contexto global e constituiam ação religiosa e social no sentido mais puro do termo. Eles seriam imagens das antigas culturas. Isso só pode ser compreendido considerando que, para o homem no seu estado natural, o mundo é íntegro, unido em sí, não desfeito em partes que nada têem a ver entre si, como na atualidade. Para o homem natural, o ver é ouvir, o ouvir é entender, o entender é sentir, o sentir é cantar e o cantar é dançar. Os seus sentidos representam uma unidade e tanto o seu conhecimento quanto a sua ação são sensoriais. O sentido desse conhecer, sentir e agir seria, para Curt Sachs a manutenção da vida: manutenção através da alimentação, da cura, do rejuvenescimento, da reprodução, do nascimento, da hereditariedade e do renascimento. Como o som é a expressão mais vital e mais imaterial que o homem possui, o instrumento seria o objeto de culto mais potente que há. Os outros objetos precisam ser espiritualizados, o instrumento musical seria, em si, Espírito (!). Por isso, o instrumento estaria, segundo Sachs, no centro de toda a vida religiosa. Ele não deveria ser considerado estéticamente, ele atuaria. Na unidade dos sentidos, a expressão acústica não seria apenas uma metáfora, mas sim seria algo essencial. O instrumento musical salientaria a magia sonora de modo material, visual e táctil. A história dos instrumentos musicais não seria, portanto, apenas a pesquisa do desenvolvimento tecnológico com fins de produções musicais mais elevadas; ela seria uma imagem da evolução do Espírito humano. Esta deveria ser a finalidade de uma Historiografia dos instrumentos musicais. Para o musicólogo, o caminho mais imediato seria partir do uso mais ou menos desenvolvido do instrumento. A historiografia moderna, porém, já não partiria da idéia de uma evolução das coisas numa linha única de progresso. De fato, de onde se poderia tirar o direito de julgar algo como sendo mais tardio, só porque seria mais desenvolvido dentro da compreensão do nosso ponto de vista atual? O que seria progresso do ponto de vista musical? Também o método ergológico seria problemático: adiantaria pouco partir do estudo das características de uso ou de trabalho. As correntes históricas da Etnologia se concentravam, na época de Sachs, na assim-chamada Teoria dos Ciclos Culturais. Tratava-se de um perene comparar de determinados objetos, idéias e costumes para observar a sua colocação na sociedade e a sua propagação, tirando conclusões relativas às etapas da formação da cultura humana e de sua história. Essa teoria, defendida por muitos etnólogos, entre eles o famoso Frobenius, não era ainda adotada por todos os etnólogos. Curt Sachs não queria tomar parte nessa discussão, mas considerava esse método como o único de natureza "histórica". Os fundamentos desse método não estavam ainda bem assegurados para que permitisse a construção de um edifício, mas poderia servir como incentivo à procura. O método geográfico, por sua vez, dizia que de cada centro cultural se irradiavam bens culturais espirituais e materiais, seja através de migrações, seja através de transplantações de tribo para tribo. Sob a pressão de novas ondas, as mais velhas seriam empurradas para a periferia. Por isso, um bem cultural seria tanto mais antigo quanto mais distante estivesse do centro de uma cultura matrix. Esse caminho também é problemático, pois ninguém tinha ainda respondido à questão se o essencial da cultura humana tinha partido de um ou de vários centros. Curt Sachs chegou à conclusão de que a totalidade dos instrumentos de todas as culturas ter-se-ia originado de alguns poucos centros, dos quais o mais importante estaria na Ásia central. Ele tinha uma imagem do mundo como este sendo caracterizado por uma unidade cultural, criada por migrações milenares através dos oceanos e terras. Para ele, o método geográfico parecia ser o mais seguro e o mais comprovável. O começo e o fim poderiam ser facilmente identificados. O caminho final surgia, para êle, claramente à luz dos dados históricos, e o início deveria ser procurado a partir de quatro questões: qual seria a produção musical, qual seria o material, qual seria a condição cultural e qual seria o raio de propagação? Sachs dá uma visão geral da sequência história a que chegou. O livro está dividido em 3 grandes capítulos: Idade da Pedra, Idade do Metal e Idade Média. O capítulo "Idade da Pedra" se subdivide em 1) O patrimônio original, 2) o nível totemistico-sexual de limites árticos, 3) o nível totemistico-grupal de limites na Oceânia do Norte e América do Norte, 4) o nível totemístico-grupal de limites na Oceânia do Sul e América do Norte, 5) o nível protopolinésico-califórnico, 6) o nível de cultura de duas classes de limites na Melanésia e na América, 7) o nível de limites polinésico-sul-americanos, 8) o nível de limites do mar do sul, malaio-polinésio, 9) o nível melanésio-sul-americano, 10) o nível indonésio-melanésio, 11) o nível oceânico do Norte e sul-americano, 12) o nível africano-ocidental e indonésio. O capítulo "Idade do Metal" se divide em: 13) nível africano-indonésio, 14) Egito do terceiro milênio, 15) a cultura da Ásia menor e Egito do quarto ao segundo milênio, 16) o Oriente no primeiro milênio antes de Cristo, 17) O Ocidente no primeiro milênio antes de Cristo, 18) o nível do Madagascar e Indonésia e 19) o nível extra-africano/indonésio. O capítulo "Idade Média" se divide em: 20) cultura superior do Sudeste da Ásia, 21) o primeiro milênio no Oriente depois de Cristo, 22) o segundo milênio depois de Cristo no Ocidente, 23) o segundo milênio depois de Cristo e 24) Apêndice: parelhas e ordenação dos instrumentos. Como os Srs. percebem desse índice, o método utilizado por Curt Sachs levou-o a conclusões altamente curiosas. Para o seu estudo, utilizou-se também de material que diz respeito ao Brasil. Assim, dá uma ilustração de um zumbidor e de um trompete do Brasil, de um tubo sonoro socador e de um bocal do tipo clarineta recolhido por Koch-Grünberg. Trataremos dos problemas que resultam da distribuição de Curt Sachs para a consideração do instrumentário indígena brasileiro no semestre respectivo. Vamos considerar agora uma de suas obras publicadas mais recentemente, editada após a sua morte por Jaap Kunst, e que se chama The Wellsprings of Music. Segundo Jaap Kunst, a substância desse livro reside numa verdadeiramente monumental discussão do desenvolvimento do elemento melódico em todos os seus aspectos, incluindo o rítmo. Esse desenvolvimento foi traçado e analisado cuidadosamente e ilustrado com muitos exemplos. Segundo a divisão de disciplinas que seguimos, grande parte deste livro trata portanto de matérias que estudaremos na disciplina Estruturação Musical. Entretanto, Curt Sachs compreende o seu livro também como uma Introdução à Etnomusicologia e, portanto, vamos tratar aqui do seu primeiro capítulo, dedicado a conceitos e métodos. Esse capítulo é dividido em quatro pontos: preliminares, o advento do etnomusicologista, a oficina do etnomusicologista e a questão a origem. Curt Sachs fala, de início, que o mundo moderno se encontra saturado de música e daquilo que se chama de música. O homem moderno usa do som como uma espécie de entorpecente, mas esqueceu de indagar o sentido e o valor daquilo que ouve. Mais uma vez ele deixa entrever a sua admiração pelo papel importante desempenhado pela música em outros povos. Um dos mais antigos livros desse campo, a "Música primitiva" de Wallaschek, cita dados de vários viajantes do passado que consideravam como ridícula aquilo que seria a expressão sagrada dos nativos. A situação ter-se-ia modificado, felizmente. Entretanto, a ciência deveria demonstrar o valor inimitável de toda a arte e desencorajar toda a espécie de exotismo artificial ou pseudo-arcaismo. Como uma parte indispensável e preciosa da cultura, ela exigiria respeito, e respeito implicaria no dever de ajudar a preservá-la. Curt Sachs se sentia particularmente horrorizado em ver a exterminação eminente da herança venerável de culturas arcaicas. As melodias do homem primitivo, uma parte orgânica, essencial da sua vida espiritual, teria sido e seria vítima de missionários. Agentes soviéticos, colonos americanos e outros também seriam agentes desse extermínio. Um dos casos mais trágicos desse extermínio seria para êle o da música das estepes da Ásia Central. Sobretudo na China, a música tradicional estava sendo assassinada e substituída por um lixo pobre e de segunda-mão do Ocidente. Isso significaria um aniquilamento irresponsável de algo que teria crescido orgânicamente e que constituiria uma parte vital da cultura. Segundo Sachs, os dois pilares da educação européia durante a Idade Média e a Renascença teriam sido a teologia e o estudo dos clássicos. Consequentemente, os escritores se baseavam na Bíblia ou nos livros da Antiguidade. Sachs ressalta os problemas que dai teriam resultado para o desenvolvimento da historiografia musical e, sobretudo, para o estudo da música de povos não-europeus. Uma ciencia da música dos povos não-europeus teria sido elevada pelos alemães a um nível universitário, é verdade, mas só na Inglaterra e nos Estados Unidos ela teria alcançado um grau de exatidão até então desconhecido do continente europeu. Essa disciplina fora chamada originalmente pelos alemães de "Musicologia Comparada" em analogia com a "Linguística Comparada", - termo que fora adotado em outros países - ; hoje, porém, o termo teria perdido a sua razão de ser. De fato, dm toda as áreas do conhecimento podem haver comparações, procurando-se semelhanças e divergências. Para ele, o nome "Etnologia (ou Etnografia) musical" põe demasiadamente em relevo o aspecto etnológico do complexo etnomusicológico. O termo Etnomusicologia seria um agregado, demonstrando que a disciplina se situa entre a musicologia e a etnologia, semelhantemente aos termos astrofísica, psicofisiologia, paleo-botânica etc. Interessante é comparar as idéias de Sachs com relação à questão das origens nos seus escritos do passado e nessa obra póstuma. Para ele, agora, essa questão não pode ser solucionada. Continua, porém, a falar de Idade da Pedra, de Idade do Metal e da coexistência de ambas numa mesma sociedade. Diz que podemos encontrar sobrevivências paleolíticas tanto parciais como em totalidades de cultura na Ásia, por ex. entre os pigmeus africanos e entre os Botocudos do Brasil. Sobrevivências mesolíticas e neolíticas seriam ainda mais freqüentes. As culturas ter-se-iam transformado na última metade deste século, mas também a Antropologia e a Pré-História ter-se-iam modificado. O dogmatismo rígido do início teria dado lugar a posições mais flexíveis. Seria normal que uma geração mais jovem de cientistas se opusessem à geração mais velha. Ele cita a posição de cepticismo extremo de um Claude Lévi-Strauss, que diz que as sociedades primitivas atuais teriam sido precedidas por outras formas de sociedade, das quais nada podemos saber, a não ser indiretamente. Para Sachs, esse conceito faria da história um caleidoscópio. Para Sachs, porém, assim como não precisamos de todos os ossos para reconstruir o esqueleto de um homem, também poderíamos reconstruir a cultura através de seus elementos: devemos ser construtores e não destruidores. Ao contrário do que havia feito no seu livro sobre os instrumentos musicais, Sachs critica agora a teoria dos ciclos culturais. A organização global de padrões culturais despertaria admiração mas também dúvidas. Suspeitoso seria sobretudo o uso do conceito de "raça", no qual os gens transmitidos biologicamente se confundiriam com o ambiente cultural. Aqui se reflete aquilo que Sachs teve de vivenciar na Alemanha antes de sua saída e que todos os Srs. devem levar sempre em consideração, pois o termo é utilizado de forma demasiadamente irrefletida no Brasil! Quantas vezes ouvimos falar que a nossa música é resultado da contribuição de três raças! O livro de Sachs termina com uma indagação: Progresso? Segundo ele, essa palavra também seria usada indiscriminadamente. Não haveria uma evolução contínua de simplicidade para a complexidade. A sequência de estilos parece ser arbitrária, confusa, até descobrirmos a lei que rege por detrás dos fenômenos. De novo volta ele a falar das artes em geral: haveria mudança, não progresso, de Rafael a Velasquez e Rembrandt, de Bach a Mozart ou Beethoven. Ele salienta, porém, que não se deve confundir progresso ou evolução com história. A sua última frase é pessimista: nós deveríamos compreender que não progredimos, mas simplesmente nos transformamos e, - visto do ponto de vista cultural - , nem sempre para melhor. Apesar de todas as modificações do pensamento de Curt Sachs no decorrer das décadas, creio que poderíamos perceber uma constante que lhe foi incutida no estudo que recebeu da História da Arte do início do século e que resulta da consideração conjunta da música com as demais artes. É aqui que se localiza o cerne de todos os problemas do seu pensamento e da sua obra. Sabemos, da nossa própria tradição, que a música fazia parte do Quadrivium, ou seja, de um sistema que englobava a Astronomia, a Geometria e a Aritmética; ela não deve ser vista, portanto, de forma tão ingênua juntamente com artes como a pintura e a escultura.
Aula do curso de Etnomusicologia da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo, 1972. Publicado em partes em Brasil- Europa & Musicologia, ed. H. Hülskath, Köln: I.S.M.P.S. e.V. 1999, 141-145. ©Todos os direitos reservados
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