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HOMO LUDENS NA ÉPOCA DAS DESCOBERTAS
Conferência proferida na Universidade de Coimbra pelo V° Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para as Índias em sessão organizada pela Profa. Dra. Maria Augusta Alves Barbosa
(1998)
Antonio Alexandre Bispo
Mosteiro da Batalha, Portugal (...)
(Por uma orientação culturológica dos estudos dos Descobrimentos)
O nosso tema pode parecer à primeira vista um tanto insólito. Como é possível falar de divertimento e Descobrimento num só fôlego, unindo assim conceitos aparentemente díspares, aproximando tematicamente a divertimento um fenômeno histórico do qual os portugueses tanto se orgulham e que é digno da maior seriedade? Os feitos lusos foram tão audaciosos e de conseqüências tão profundas que surgem como quase que lendárias epopéias, cujos protagonistas merecem, como os grandes heróis da Antiguidade, monumentos que perpetuem a sua memória. Não só as estátuas, mas também a literatura que celebrizou os grandes vultos dos argonautas portugueses, as solenes comemorações dos homens e dos fatos do passado e todos os atos simbólicos criados para revelar e relevar a importância de heróis portugueses e de suas acções demonstram o significado que este período da História adquire na consciência e na identidade nacional. Como é possível portanto falar de divertimento perante a magnitude da revelação de novos mundos? Isso não significa quase que um acto iconoclasta contra monumentos da memória coletiva e da nacionalidade? Como é possível falar de divertimento quando se conhece a seriedade e as dificuldades com que os dirigentes do país e da Igreja organizaram e conduziram os empreendimentos marítimos, o sacrifício de tantos homens, que abandonaram os lares, que enfrentaram os mares, as incertezas das travessias, as doenças, a fome, as privações de toda a espécie, o desespêro, a saudade, que arriscaram as suas vidas e que muitas vezes nunca mais retornaram? Como é possível falar de divertimento quando se sabe da falta de escrúpulos de muitos homens do passado, da ganância pelo ouro, da ambição pessoal, do fanatismo religioso, das atrocidades de toda a espécie cometidas, da tragédia que foi a expulsão dos judeus e da vergonha da escravatura? Esta indignação é muito compreensível. O tema desta exposição, porém, é justificável. É possível seguir na investigação histórica um outro caminho do que aquele que levou à solenização romântica e nacionalista da história, e que agora às vezes nos parece um tanto passadista e artificial. É possível também seguir um outro caminho do que aquele que, partindo materialisticamente da fraqueza ética e da iniquidade do homem apresenta a história fundamentalmente sob um prisma de interesses económicos e de luta de classes, traçando um panorama profundamente triste do passado, conduzindo à revolta e a conflitos. Poderíamos seguir também um outro caminho do que aquele que, partindo da comoção despertada pelo destino de vida e pelos sacrifícios individuais do dia-a-dia da gente do povo lançada ao mar fez da História de Portugal um canto melancólico e sentimental, um verdadeiro fado, que tira as forças e prende os portugueses à perene saudade.
Tentarei demonstrar que o caminho que proponho não apenas permite revelar novos aspectos do passado, mas também permite que tiremos da história lições úteis para o presente e para a nossa orientação em direção ao futuro. Gostaria de deixar bem claro que não coloco em dúvida, absolutamente, que a Época das Descobertas representa uma fase de tal excepcional significado na História de Portugal e do Mundo, de importância tão decisiva na trajetória do Homem através do tempo que merece ser considerada com a maior seriedade e respeito. Essa seriedade, porém, não implica obrigatoriamente na construção de mausoléus. Ela reside, a meu ver, exclusivamente na devida consideração das fontes históricas e na sua interpretação adequada segundo conceitos e a visão do mundo e do homem da época. O nosso respeito deve manifestar-se na nossa atitude de nos fazermos aprendizes e não docentes das vozes do passado. Toda e qualquer menção nos documentos, por mais irrelevante que possa parecer de início ao nosso julgamento, deve ser vista como potencialmente de grande valor.
(História das mentalidades e estudos da lúdica) Esse é o caso das numerosas referências a danças, jogos, costumes, usos e instrumentos musicais populares nas fontes históricas dos séculos XV e XVI. Essas menções são em geral suscintas e feitas de passagem, de modo que passam muitas vezes despercebidas na leitura. Elas contribuem à descrição da atmosfera de cenários e de acontecimentos históricos, e servem assim como instrumentos da linguagem literária. Cada vez mais, porém, tornamo-nos conscientes da quantidade e do valor documental de tais referências. Mesmo assim, temos - pelo que me parece- uma certa dificuldade em considerá-las sob uma perspectiva adequada, dado o espírito comemorativo e de solenização do passado que marca a nossa ciência. Se, por um lado, parece-nos fácil dar atenção à importância da música litúrgica como parte integrante do culto divino e como tal levada pelos religiosos a outras terras, se, por outro lado, parece-nos fácil também compreender o papel relevante da música militar e a função de instrumentos musicais nas fortalezas e nas ações guerreiras, ficamos desorientados em enquadrar jogos, danças, brinquedos e outras manifestações da alegria no cenário de seriedade grave que criamos da época dos Descobrimentos. Assim, as referências documentais que dizem respeito a instrumentos populares, a danças, folguedos e a passatempos de toda a espécie não têm recebido a atenção que merecem. Elas nos parecem circunstanciais e não se coadunam com a imagem muitas vezes de trágico cariz que temos da grande epopéia dos oceanos. Basta, porém, que consideremos a maneira com que os primeiros africanos de linhagem foram recebidos em Portugal no século XV para percebermos o significado do aspecto lúdico na cultura da época. Assim, Ruy de Pina relata como D. João II ordenou que se realizassem festas de canas, apresentações de momos e danças para a recepção de um nobre Djolof chamado Bemoin. Poder-se-ia ter a idéia de que este ambiente festivo, tão próprio da Renascença, ficasse restrito à Portugal. Os documentos provam, porém, que o espírito lúdico também marcou profundamente as viagens e influenciou os contactos locais com os povos do ultramar. Sem a consideração mais profunda do sentido das manifestações lúdicas não se pode até mesmo entender a simbologia dos instrumentos musicais populares citados nas fontes.
(Estudos de simbologia organológica e os Descobrimentos) Vejamos, por exemplo, a gaita de foles: um instrumento primeiramente citado por Alviso da Cadamosto na descrição do contato dos europeus no Senegal do século XV. O autor descreve com humor a surprêsa dos nativos perante o instrumento que lhes foi tocado por um marinheiro. Por emitir muitas vozes e por trazer um pano ao redor, como se fosse uma saia, foi julgado pelos senegalenses como expressão de um ser divino. Esse texto é bastante conhecido, vale a pena, porém, recordá-lo. Cadamosto diz: "Também se maravilhavam com o som de uma de nossas gaitas de foles de aldeia, que fiz que um de meus marinheiros tocasse; quando a viram, vestida na cintura e com um lenço à cabeça, pensavam tratar-se de algum animal vivo, que assim cantasse a várias vozes; e foram tomados ao mesmo tempo de grande contentamento e admiração. E observando eu tal simplicidade, disse-lhes que se tratava de um instrumento; e dei-lhes desmontada às mãos, de forma que pudessem ver que era um objeto feito por mãos de homens. Assim mesmo diziam ser algo celeste feit por mãos de Deus, pois soava tão docemente e com tão diversas vozes. Diziam que jamais haviam ouvido algo tão doce." No seu relato da partida da frota de Pedro Alvares Cabral em 1500, que vamos celebrar em poucos anos, João de Barros ressalva que os marinheiros levavam, entre outros instrumentos populares, gaitas de foles a fim de dispersar a tristeza nas longas viagems. Também não sem humor observa ele que esse instrumento, que servia para apascentar o gado nos campos, tornara-se um verdadeiro instrumento do mar. "A qual despedida, geralmente a todos, foi de grande contemplação, porque a maior parte do povo de Lisboa, por ser dia de festa e mais tão celebrada por el-rei, cobria aquelas praias e campos de Belém, e muitos em bateis, que rodeavam as naus, levando uns, trazendo outros, assim serviam todos com suas librés e bandeiras de cores diversas, que não parecia mar, mas um campo de flores, com a frol daquela mancebia juvenil que embarcava. e o que mais levantava o espírito destas coisas, eram as trombetas, atabaques, sestros, tambores, flautas, pandeiros, e até gaitas, cuja ventura foi andar em os campos no apascentar dos gados, naquele dia tomaram posse de ir sobre as águas salgadas do mar, nesta e outras armadas, que depois a seguiram, porque, para viagem de tanto tempo, tudo os homens buscavam para tirar a tristeza do mar." Do Testamento de Alvaro Caminha (1499) sabe-se que a gaita de foles já era executada em São Tomé em fins do século XV: como capitão da ilha deixou Caminha muitos escravos de herança a um executante desse instrumento, por ter este muito bem servido. A gaita de foles também soou no Descobrimento do Brasil. Missionários chegaram mais tarde até mesmo a pedir o envio de gaiteiros de Portugal. Segundo um jesuíta, não haveria indígena americano que não ficasse fascinado pela música de um desses instrumentos e que por isso não se deixasse converter, caso houvesse instrumentistas à disposição. A evasão de instrumentos parece ter sido tão grande que Gil Vicente se refere ao vazio das aldeias sem gaitas e tamborileiros. Ora, a gaita de foles estava intimamente relacionada com costumes populares e associada a concepções do mundo e do homem de cunho religioso de antigas origens. Ela simbolizava segundo os tratadistas medievais o homem carnal, velho, da Antiga Lei e portanto a sinagoga. Por isso, fazia parte das representações alegóricas de Natal, onde a Igreja, para vivenciar com maior alegria a vinda de Cristo em Espírito no presente, rememora o passado e se coloca na posição da antiga Humanidade que esperava pela vinda do Messias em carne. Esse homem velho, cujo senso e cujas preocupações eram dirigidas somente ao terreno, e que trazia em sí a imagem do Adão caído, era uma figura trágica. Visto porém da perspectiva do Cristão, surge como uma figura grotesca, ridícula, satírica. A gaita de foles fazia portanto parte dos presépios tão cultivados pelos franciscanos e era instrumento de costumes tradicionais e de autos populares do ciclo de festas do Natal e da Epifania. É, portanto, compreensível que tenha sido levada por marinheiros sobretudo em viagens que partiam nessa época de Portugal. Como instrumento de pastores, que tomam conta do rebanho e prestam atenção para que este não seja atacado por lobos, tinha a gaita de foles um sentido apotropaico, ou seja servia para afugentar o mêdo e o mal, por exemplo das tempestades em alto mar. De maneira alguma, portanto, pode-se partir da idéia de que a gaita de foles tenha sido levada nas viagens como hoje se levaria uma guitarra ou um toca-fitas. Somente assim se explica que marinheiros trouxessem consigo tais instrumentos musicais, apesar da exiguidade do espaço disponível nas naus. Ela servia para combater a tristeza, pois estava a serviço da alegria que a Igreja, como se fosse uma noiva, sente pela chegada do Amado, ou seja, a divina Sabedoria. Por esse motivo, os instrumentos natalinos relacionam-se com costumes, nos quais os participantes demonstram estar sintonizados de espírito e alma com a Igreja por meio de símbolos externos, por exemplo através de chapéus em forma de capelas e pelo uso de saias e outros atributos femininos. O transvestismo simbólico foi e é um fato normal no nosso populário cristão.
(Representações do grotesco da humanidade velha) Tapeçarias de D. João de Castro. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/Museu Nacional de Arte Antiga, 1995), 218 ss. N° 5: "Último pano do Cortejo Triunfal: Folias, Danças e Folgazões". Discutido no âmbito da conferência. Note-se os cascavéis nos tornozelos, nas pernas, e os pandeiros de aro. A dança não demonstra características que permitem que seja identificada como folia, o que tem sido errôneamente feito. Trata-se de uma dança popular profana, sem diretas conotações religioso-simbólicas, passível talvez de ser identificada pela pesquisa coreológica renascentista. Apresenta, porém, traços indiretos de uma organização sugerida pelas cores vermelha e azul nos dançarinos que se confrontam. A sua inserção no complexo simbólico geral deriva de elos com as figuras agigantadas carregadas aos ombros. Trata-se aqui possívelmente da tradição relacionada com o complexo da Moxiganga. Agradecimentos à Dra. Ana Balmori, que primeiramente estudou os motivos musicais dessa fonte e que possibilitou a sua consideração nas sessões de Lagos e Coimbra. Quem lê com atenção os documentos da época dos Descobrimentos fica surprêso também com o fato de nossos antepassados levarem cascavéis, ou sejam guizos, como presentes para os povos a serem contatados. Também na viagem de Vasco de Gama, que comemoramos este ano, levaram-se tais cascavéis, que foram distribuídos e muito auxiliaram no estabelecimento de contatos na África (Baia de Santa Helena, Baia de São Brás). "E nos estávamos todos ou a maior parte de nós a este tempo na nau do capitão mor. E quando os vimos fomos em terra nos bateis que levávamos, muito bem armados, e quando estávamos junto à terra o capitão mor lhes lançava cascavéis pela praia à fora. E eles os tomavam. E não só pegavam aqueles que lançávamos, mas vinham tomá-los das mãos do capitão-mor, o que nos deixou muito admirados, porque quando Bartolomeu Dias aqui esteve, disse que dele fugiam e que não aceitavam nada daquilo que ele lhes oferecia (...)". Sabemos que até mesmo o pagamento de instrumentistas militares se fazia em parte com tais guizos, pois eram utilizados nas trocas com nativos. Não só os portugueses, mas também os espanhóis utilizaram-se desses cascavéis. Eles foram levados em grandes quantidades nas viagens de Colombo, serviram para conquistar a simpatia dos indígenas e levaram posteriormente a uma das mais horrendas formas de escravização, pois passaram a servir de medida para o ouro que os nativos deveriam entregar aos espanhóis.
Seria errôneo julgar que os organizadores das viagens incluíssem tais instrumentos a serem presenteados apenas por considerar os povos a serem contactados como infantís. Esses guizos, que eram até mesmo importados de Flandres, tinham um significado metafórico, diríamos até mesmo superstioso para os europeus. Os cascavéis serviam como símbolos propiciatórios da atração e do sucesso nos contatos. Eles eram e são usados, presos por exemplo aos tornozelos dos dançarinos, em costumes da passagem do ano em que se festeja a retomada do movimento ascendente na natureza. Da viagem de Vasco da Gama temos duas outras importantes menções relativas a folguedos da tripulação. Assim, na África do Sul, logo após a passagem do Cabo da Boa Esperança, enquanto os africanos cantavam e dançavam na praia, os marinheiros festejaram a bordo, juntamente com o capitão. "(...)a ao sábado vieram obra de duzentos negros entre grandes e pequenos e traziam obra de doze reses entre bois e vacas e quatro ou cinco carneirso. E quando nós os vimos fomos logo em terra, e eles começaram logo a tanger quatro ou cinco flautas, sendo que uns tocavam o soprano e outros o baixo, de maneira que faziam um muito bom concerto, o que não se espera de negros. E bailavam como negros. E o capitão mor mandou tanger as trombetas e nós nos batéis bailávamos, e o capitão-mor também de volta conosco. (...)" Sobretudo em Melinde houve grandes folias a bordo, pois se tratava do Domingo de Páscoa. Também aqui os portugueses distribuiram guizos, até mesmo às autoridades nativas. Nessa referência fica mais uma vez evidente a íntima ligação das danças e dos folguedos dos marinheiros com as grandes datas do ano litúrgico, sobretudo com o Natal e a Páscoa. Um dos mais impressionantes documentos que traz notícias a respeito de folguedos da época da Páscoa é a Carta de Pero Vaz de Caminha, na qual se relata a D. Manuel o Descobrimento do Brasil. Alí se lê que após a celebração da missa, um rapaz, que o cronista descreve como gracioso, e cujo nome até mesmo registra para a posteridade, executa saltos, dança ao som da gaita e participa das danças dos indígenas. Chega até mesmo a segurar os seus parceiros pelas mãos, fato inusual para os índios, o que foi motivo de muita alegria. Também os outros documentos do Descobrimento do Brasil ressaltam a importância dos folguedos nesse primeiro encontro. "(...) passou-se então além do rio Diogo Dias, que veio de Sacavém e que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo hum gaiteiro nosso com uma gaita e meteu-se com eles a dançar tomando-os pelas mãos e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez-lhes ali andando no chão muitas voltas ligeiras e salto real de que se espantavam e riam e folgavam muito." Também os costumes populares e folguedos da Festa de Pentecostes foram levados pelos marinheiros para a América e para a Ásia. Deve-se salientar sobretudo a tradição da coroação do Imperador do Divino, tão ligada à memória da Rainha D. Isabel e sobretudo cultivada nos Açores. No relato da travessia do Vice-Rei da India em 1561 descreve-se pormenorizadamente a celebração desta festa em alto mar, tendo-se erigido em um dos navios o tradicional trono do Divino. Houve até mesmo distribuição de prêmios aos melhores grupos de invenções de jogos. Tapeçarias de D. João de Castro. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/Museu Nacional de Arte Antiga, 1995). N° 5: "Último pano do Cortejo Triunfal: Folias, Danças e Folgazões". Discutido no âmbito da conferência. Traça-se de uma dança de espadas (Ballimachia), também conhecida na Península Ibérica e na América Latina. Os dançarinos formam um círculo com as espadas e um deles executa um passo de destreza saltando sobre a própria espada, gesto que é então repetido pelos demais. Note-se o uso de cascavéis nas pernas. A dança era acompanhada apenas por tambor militar. Embora tradicional, o seu elo com um sistema de ordenação simbólica é antes indireto. (Diferenciação de danças e coerência da organização simbólica)
Do Oriente temos várias notícias a respeito de folias e de outros costumes populares com dança e música. Toma-se conhecimento pelas fontes que apesar de toda a atmosfera guerreira dos primeiros anos na Índia, as autoridades locais se surpreendiam com as folias e grandes danças dos marinheiros portugueses.
Ao lado dos folguedos de marinheiros precisa-se salientar a prática musical profana na vida dos oficiais e das autoridades governamentais, muitas vezes colocada a serviço da diplomacia. Assim, tem-se notícias a respeito de música em banquetes, ou seja "Tafelmusik", nas ceias oferecidas a potentados do Congo em navios. Por ordem de Pero de Faria, capitão da fortaleza de Malaka (1539-1545) ofereceu-se um banquete ao rei de Batak-Sumatra, que se realizou au som de harpas, dulcianas e violas de arco segundo o "mais fino costume portugues". Se levarmos em conta as informações de Fernão Mendes Pinto, então já havia grupos de folias no primeiro estabelecimento de portugueses na China, onde até mesmo se faziam desfeitas à portuguesa. Não precisamos porém considerar essa fonte para termos certeza do cultivo das tradições populares portuguesas na Ásia. Os documentos citam, entre outros, os seguintes folguedos: danças de labirinto ou caracóis, barcas, lutas de mouros e cristãos das mais diversas variantes (suíças, danças de espadas), presépios, argolinhas, cavalhadas, dança da pela, folias de Reis, corridas de touros, autos sacramentais, representações allegóricas e muitas outras expressões do populário tradicional. Não vamos porém citar mais dados. O que importa saber é a razão dessas expressões de alegria e sobretudo do entusiasmo folgazão dos portugueses no Ultramar. Das fontes podemos até mesmo saber que esse fenômeno era conhecido na Metrópole. Nas regiões distantes, as festas passaram desde cedo a serem celebradas com maior empenho e vivacidade do que em Portugal. Já nas viagens de travessia os passageiros tomavam contato com o espírito festivo que encontrariam nas Índias. Essas comunidades distantes se tornaram assim verdadeiros repositórios de tradições populares portuguesas, adaptadas em parte às condições locais. (Análise hermenêutica: fundamentação teológica)
Muitos seriam os motivos que poderiam ser considerados para explicar o cunho festivo da vida dos portugueses em terras não-européias. A razão primordial é, a meu ver, de origem religiosa. Essa fundamentação teológica é muito bem esclarecida por João de Barros no Panegírico de D. João III e da Infanta D. Maria, um dos mais significativos documentos a respeito da tradição do pensamento músico-especulativo da época. Os instrumentos populares são aqui considerados claramente sob a visão tipológica tão caraterística do catolicismo de séculos passados; assim, por exemplo, os tamborins simbolizam Maria, a irmã de Moisés e refletem a alegria pela derrota dos egípcios e pela vitória dos judeus. Paradigma do homem lúdico é David, que dançou perante a Arca da Aliança. Criticado por tal falta de dignidade, deu David a resposta que justifica e explica a função espiritual da sua dança: a alegria e a gratidão que ele sentia era tão grande, que ele se humilhava e se despojava. Como João de Barros bem diz, os instrumentos populares serviam para afugentar a tristeza, e a tristeza constituia um dos grandes problemas nas longas travessias, capaz de corroir as esperanças, desmotivar e tirar as forças dos marinheiros. As viagens mal organizadas de Colombo demostram a que ponto o ócio podia levar no rebaixamento espiritual e moral da tripulação. O combate ao ócio não era porém apenas uma necessidade prática, mas sim uma exigência da religião. Tapeçarias de D. João de Castro. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/Museu Nacional de Arte Antiga, 1995). N° 5: "Último pano do Cortejo Triunfal: Folias, Danças e Folgazões". Discutido no âmbito da conferência. Tocador de tambor acompanhante da dança de espadas. Trata-se um um tambor militar executado com duas baquetas, de cordoamento identificável. Não se trata de instrumento de artesanato popular, mas sim da vida militar. O catecismo do Concílio de Triento dá-nos a chave principal para a compreensão das concepções católicas transmitidas através dos séculos e que nele foram coligidas e sistematizadas. Dele se depreende a importância dada ao terceiro mandamento, que obriga a guarda dos dias santos e feriados. Nesses dias, como sabemos, deve o fiel abster-se de trabalhos servís e de ocupações terrenas, assistir ao culto e ouvir pregações. Sendo um dia santificado, a sua mente deve estar dirigida ao alto, a coisas espirituais, e por isso deve evitar espetáculos profanos e jogos de azar. Mas, como o catecismo bem salienta, também as horas de folga não devem ser em absoluto passadas ociosamente, pois o ócio foi sempre visto como o início de todo o mal. As atividades deveriam também aqui ser dirigidas não a ocupações e preocupações carnais, mas sim a assuntos espirituais ou celestiais. Essas ocupações deveriam ser imbuídas do espírito da liberdade das algemas terrenas, oferecendo um sabor do gozo e da pura alegria beatífica que os santos desfrutam nos céus. Os folguedos católicos serviam portanto ao cumprimento desse mandamento no que diz respeito às horas não destinadas ao culto. Entre os folguedos com fundamentação espiritual e os divertimentos profanos há portanto uma diferença fundamental. Nos documentos da época podemos muito bem verificar tal diferença. Assim, por exemplo, os religiosos procuravam impedir o que muitas vezes chamavam de "chocarrices", incentivavam porém aquilo que denominavam invenções, diferenças e folias. Os folguedos de fundo religioso não podem, porém, ser compreendidos sem a consideração do segundo mandamento, que é pressuposto do terceiro. Lembremos que os dez mandamentos eram divididos em dois grupos: os tres primeiros dizem respeito ao amor ao Criador, os demais ao amor ao Próximo. Segundo a interpretação do catecismo tridentino, o segundo mandamento diz respeito ao louvor interior do Homem. Este, ao contemplar a Criação, é capaz, segundo o apóstolo Paulo, pelo uso da razão, de reconhecer o Invisível do Criador, o seu poder e a sua magnificência. Ele tem obrigação de ser grato e louvá-lo em todos os momentos da vida, bons ou maus. Ele é um homem que canta interiormente. O terceiro mandamento, que se refere ao culto externo, obriga à exteriorização do louvor interno. Só que o homem que canta, no sentido místico da palavra, é o sacerdote, que celebra o sacrifício. Ao leigo cabe uma outra forma de exteriorização do louvor despertado interiormente através da contemplação da obra da Criação, sobretudo dos Céus. Os autos religiosos e as representações com dança e música representam tais formas de exteriorização, nas horas de folga dos dias santos e feriados. Este é o homem lúdico, o homem que louva em gratidão ao Criador pela sua obra. A Criação, porém, que deve ser contemplada, não é estática, mas se apresenta em constante movimentação. Nas longas viagens marítimas, o Homem tomava consciência particular dessa movimentação do Cosmo. Na imensidão dos mares, observando as águas e as constelações do céu estrelado, compenetrava-se da sua imersão num mundo em perene transformação, no ciclo do tempo, no rítmo das marés e dos ventos. Ele tomava consciência, por assim dizer existencialmente, de que a única orientação possível nesse mundo que dança é a partir de um ponto imóvel, o Norte. Este representa o Imóvel que tudo Movimenta, a Semente, da qual nasce a árvore e saem os frutos, ou seja, o Pai. No céu estrelado, é a Estrela do Norte que é a mais próxima do Polo Norte; ela pertence à Constelação da Ursa Menor, que está defronte do Ponto Imóvel, assim como os Anjos estão à face de Deus em perene louvor. Rodeando o Norte, encontra-se uma outra constelação, muito mais impressionante, que surge como uma corrente contínua que nunca desaparece no Horizonte. Este é o símbolo daquele que se movimenta e que movimenta, da sabedoria divina, invisível . Este é, segundo as tradições dos vários povos, daquele que dança por excelência, o Homo Ludens na mais alta expressão da palavra, imagem do rio que brotou de Edem e que se dividiu em quatro correntes, ou seja, um sinal de Cristo. O Catecismo tridentino começa com a avaliação da extraordinária capacidade de conhecimento do Homem, que é capaz de perceber, pela razão, ainda que com muito sacrifício, o oculto por detrás do visível. Os seus conhecimentos, porém, não lhe dão a felicidade a que aspira. A essa sabedoria chega o Homem apenas pela fé. A alegria do homem que se desprende das ocupações terrenas e que dirige a sua mente aos céus, que é grato na sorte e no infortúnio, e que louva o Criador pela sua obra, é exteriorizada nos folguedos. Pois o homem interior é conhecido pelos seus frutos em palavras em atos. O homem que assim se expressa, em danças e em outras formas do populário católico, está portanto intimamente ligado com um processo íntimo de Descobrimento, ou seja de tomar notícia daquilo que estava encoberto e invisível. Para o cristão, trata-se aqui na verdade de um contínuo redescobrimento, de uma revelação do descobrimento, que nos é dada especialmente nos dias de guarda, quando dirigimos a nossa atenção ao alto. Este sentido espiritual do Descobrir é nos ensinado expressamente no Esmeraldo de situ orbis, de Duarte Pacheco Pereira:
"A revelação do descobrimento de tantas e tão grandes províncias novamente sabidas da Cristandade bem parece vir por novo mistério de Deus e não por outro modo temporal; porque de necessidade se há-de comprir o que disse o Profeta Davi no salmo dezoito que começa Celi enarrant gloriam Dei, onde adiante vai um verso que diz in omnem terram exivit sonus eorum et in finis orbis terrae verba eorum; e porque a doutrina de Nosso Senhor, que pelos Apóstolos foi pregada para salvação universal do mundo, também nestas Etiópias se perdeu, ele, por Sua infinita misericórdia e bondade quer que (pos nós sucedemos a Sua lei e fé divinal) que por nós se torne agora a ressuscitar." O termo Descobrimento, portanto, que hoje é por muitos criticado, que preferem às vezes usar do termo Achamento, adquire neste contexto um sentido muito mais profundo. Ele se apresenta como um ato do conhecimento humano intimamente relacionado com a contemplação da obra do criador, da alegria interna, da gratidão e da sua exteriorização na humildade do homem que, como David, se despoje da sua soberbez no dançar e brincar.
Tapeçarias de D. João de Castro. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/Museu Nacional de Arte Antiga, 1995). N° 5: "Último pano do Cortejo Triunfal: Folias, Danças e Folgazões". Discutido no âmbito da conferência. Principal detalhe para fins de análise cultural e de sentido. As figuras sobremontadas são conhecidas da tradição ibérica e do populário católico transplantado para o Novo Mundo. Observe-se que são carregadas por nativos. O sentido grotesco dessas representações tem sido estudado, assim como a sua fundamentação bíblica. A partir dessas figuras, relacionadas com o complexo da Mochiganga, as danças de espadas e a de guizos adquirem sentido no contexto global da representação simbólica. (Edifício ontológico e cultura lúdica)
Os portugueses criaram no Ultramar uma cultura do Homo Ludens, que se manifesta até hoje na riqueza das manifestações da alegria em várias regiões do mundo por onde passaram, especialmente no Brasil. E essa cultura lúdica, lusa, pelo que parece até mesmo no sentido etimológico da palavra, teve esse florescimento na época dos Descobrimentos através das viagens marítimas, através da necessidade que o Homem sentiu de se guiar por aquele que é Imóvel e que tudo movimenta. É impossível, portanto, compreendermos a cultura surgida através dos contatos dos portugueses no mundo extra-europeu se não levarmos em consideração a concepção e das formas de vivência do mundo e homem herdadas da Antiguidade e da Idade Média, e reforçadas na Contra-Reformação. A consideração do componente lúdico na integralidade do mundo dos nossos antepassados é também de suma importância para a compreensão da própria história da música de Portugal. Só assim é que podemos, por exemplo, entender o papel desempenhado pelos vilancicos e outras formas e gêneros não propriamente sagrados dos séculos XVI e XVII.
(Diferenciações da lúdica: passatempos e folguedos simbólicos) À guisa de um resumo gostaria de salientar alguns pontos que, a meu ver, deveriam permanecer na nossa memória. 1. Há uma diferença fundamental entre os passatempos então considerados ilícitos e os folguedos cristãos. Muitos dessas formas recreativas nos parecem hoje profanas, possuíam porém uma fundamentação espiritual. 2. O entendimento da bíblia e da história sagrada era essencialmente de cunho tipológico, ou seja, baseado na comparação dos tipos do Velho Testamento com os anti-tipos do Novo Testamento. Os tipos da Humanidade Terrena, carnal, são de cunho trágico, representam homens e mulheres cheios de defeitos, sujeitos a todo o tipo de ambições fúteis e que não atingem o que desejam. Vistos da perspectiva do Homem Novo, surgem como figuras cómicas, satíricas. 3. A vivência dos tempos do ano segundo o calendário litúrgico dava-se muito mais do que hoje na consciência do sentido místico da vinda de Cristo. No presente, Ele vem àqueles que o amam apenas em Espírito. No passado, Ele veio em carne, em meio à humanidade carnal. Os fiéis que folgam, para sentirem mais profundamente a alegria dos mistérios festejados, se inserem na posição do homem carnal, que tanto desejava a vinda do Messias em carne. Eles representam portanto o tipo do homem imperfeito, escravizado pelos seus desejos e frustrado nas suas espectativas, por assim dizer, o velho ou o vilão de nossas tradições populares. Espero ter justificado o fato de ter escolhido, como tema desta exposição, Divertimento e Descobrimento. Espero também ter justificado a minha convicção, de que a melhor forma de fazermos jus à memória de nossos antepassados e de salientarmos o contributo dado por Portugal ao mundo não consiste tanto na ereção de mausoléus, mas sim na redescoberta da alegria e do espírito festivo que é produto do contemplar da maravilha da criação e do sentimento de gratidão que ao mesmo tempo nos exalta e nos torna modestos.
Muito obrigado pela atenção.
O texto aqui publicado é apenas um das várias centenas de artigos colocados à disposição pela Organização Brasil-Europa na Internet. O sentido desses textos apenas pode ser entendido sob o pano de fundo do escopo da entidade. Pedimos ao leitor, assim, que se oriente segundo a estrutura da organização, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral: http://www.brasil-europa.eu Dessa página, o leitor poderá alcançar os demais ítens vinculados. Para os trabalhos recentes e em andamento, recomenda-se que se oriente segundo o índice da revista da organização: http://www.revista.brasil-europa.eu Publicações para resenhas devem ser enviadas ao seguinte endereço: Akademie Brasil-Europa Dieringhauser Str. 66 51645 Gummersbach, Alemanha Salientamos que a Organização Brasil-Europa é exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. É a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro, supra-universitária e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações ou outras páginas da Internet que passaram a utilizar-se de denominações similares. Prezado leitor: apoie-nos neste trabalho que é realizado sem interesse financeiro por brasileiros e amigos do Brasil! Torne-se um dos muitos milhares que nos últimos anos visitaram frequentemente as nossas páginas. Entre em contato conosco e participe de nossos trabalhos: contato
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A. A. Bispo. Conferência realizada na Biblioteca Municipal de Lagos e na Universidade de Coimbra. Publicada, entre outros, em: Brasil/Europa & Musicologia. Köln: I.S.M.P.S. e.V. 1999, 367-376 (ISBN 3-934520-00-6) ©Todos os direitos reservados