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Nomes da história intercultural em contextos euro-brasileiros
Alfred Russel Wallace (1823-1913)
Nasceu em Usk, Monmouthshire, Grã-Bretanha, no dia 8 de janeiro de 1823. Faleceu em Broadstone/Bournemouth, no dia 7 de novembro de 1913. Uma das mais extraordinárias personalidades como pesquisador de múltiplos interesses do século XIX. Injustamente esquecido, vem sendo hoje gradativamente redescoberto no seu significado nas várias áreas disciplinares (biologia, geografia, etnografia, antropologia, geologia e outras). A A.B.E. empenha-se para que seja reconhecido a sua importância para os estudos culturais, em particular interculturais.
Tendo recebido apenas instrução escolar básica, formou-se sobretudo auto-didaticamente. Obras científicas, relatos de viagens, tratados de teologia e outros forneceram as bases dos seus conhecimentos e influenciaram as suas concepções. Realizou várias viagens de estudos e observações dentro da própria Inglaterra.
Desenvolveu viagens de pesquisas pelo Brasil entre 1835 e 1844. Explorou o Amazonas e o Rio Negro de 1848 a 1852. Desenvolveu, com H. W. Bates, a teoria do mimetismo. De 1854 a 1860, pesquisou o arquipélago malaio. Teceu comparações entre o que observara no Brasil e o que pesquisou nas ilhas malaias. Dividiu a terra em regiões segundo a distribuição dos animais; mostrou que os rios Amazonas e Negro constituem barreiras na distribuição dos animais. A distinção entre Borneo, Sumatra e Java como pertencentes à parte asiática e Celebe à australiana eternizou o seu nome ("Linha Wallace"). Em 1858, apresentou a teoria da seleção natural na luta pela sobrevivência, seguindo-se à qual Darwin publicaria as suas próprias pesquisas. Em 1870, publicou as suas Contributions to the theory of natural selection, lançada em versão alemã, no mesmo ano, sob o título de Beiträge zur Theorie der natürlichen Züchtwahl. Em 1876, escreveu On the geographical distribution of animals, em 2 volumes. Por esse e outros trabalhos, é visto hoje como um pioneiros da Biogeografia e mesmo da Ecologia. Escreveu também textos sobre a evolução da humanidade, das raças, tratou de questões etnográficas, de expressões da boca e de gestos, da evolução das capacidades intelectuais e morais do homem e tentou desenvolver uma teoria sobre a origem da linguagem. Foi socialista e partidário da reforma agrária na Irlanda. Escreveu 22 livros e mais de setecentos artigos. Recebeu numerosas medalhas e condecorações. Foi nomeado doutor honoris causae pelas universidades de Dublin e Oxford.
[Excertos de trabalhos]
História Natural inglesa e os estudos músico-culturais do Amazonas
Texto para discussão com estudantes em colóquio do Forum BRASIL-EUROPA, Leichlingen, 1983, dirigido por A.A.Bispo e sob o patrocínio da Embaixada dos EUA
(Trechos traduzidos do alemão)
Antonio Alexandre Bispo O presente texto, já antigo, oferece excertos de uma conferência realizada em 1981 no âmbito do I° Forum Brasil-Europa de Leichlingen, Alemanha, evento realizado sob a direção de A.A.Bispo. É aqui publicada em português com o objetivo de documentar os trabalhos realizados no âmbito da Academia Brasil-Europa e institutos integrados. Não reflete o estado atual dos conhecimentos, uma vez que os trabalhos tiveram continuidade. Principais datas do desenvolvimento dos estudos culturais concernentes a A. R. Wallace 1975. Vestígios histórico-culturais anglo-brasileiros. Londres 1983. Pesquisadores de língua inglesa no Brasil. Semana Norte-Americana. Forum Brasil-Europa. Leichlingen 1988. 75 anos de morte. Viagem de estudos. Inglaterra 1998. 175 anos de nascimento. Música no Encontro de Culturas. Universidade de Colonia 2002. Europa e o universo sonoro dos índios. Colonia e Universidade de Colonia. A.B.E. Indicações bibliográficas: Alfred Russel Wallace. A narrative of travels of the Amazon and rio Negro. New York: 1889 (2a. ed.) Alfred Russel Wallace. Viagens pelos rios Amazonas e Negro. Trad. E. Amado. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: Universidade de São Paulo, 1979 George, W. B. Biologist Philosopher: A study of the life and writings of A. R. Wallace. Londres, 1964 Gheerbrant, Alain. The Amazon. Past, present and future. Paris. Gallimard, 1988 Bispo, A. A. "Biologistische Philosophie bei der Betrachtung der Musik Amazoniens". Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens: Stand und Aufgaben der Forschung IV: Zur Geschichte der Forschung. Anuário Musices Aptatio 2000/1. Roma/Siegburg 2001, 178-188 Glaubrecht, Matthias. Die ganze Welt ist eine Insel. Beobachtungen eines Evolutionsbiologen. Stuttgart: Hirzel, 2002 Glaubrecht, Matthias. Alfred Russel Wallace: Der ewige Zweite. 12/2002 GEO 133-156
O presente texto, já antigo, oferece excertos de uma conferência realizada em 1981 no âmbito do I° Forum Brasil-Europa de Leichlingen, Alemanha, evento realizado sob a direção de A.A.Bispo. É aqui publicada em português com o objetivo de documentar os trabalhos realizados no âmbito da Academia Brasil-Europa e institutos integrados. Não reflete o estado atual dos conhecimentos, uma vez que os trabalhos tiveram continuidade. Principais datas do desenvolvimento dos estudos culturais concernentes a A. R. Wallace
1975. Vestígios histórico-culturais anglo-brasileiros. Londres
1983. Pesquisadores de língua inglesa no Brasil. Semana Norte-Americana. Forum Brasil-Europa. Leichlingen
1988. 75 anos de morte. Viagem de estudos. Inglaterra
1998. 175 anos de nascimento. Música no Encontro de Culturas. Universidade de Colonia
2002. Europa e o universo sonoro dos índios. Colonia e Universidade de Colonia. A.B.E. Indicações bibliográficas:
Alfred Russel Wallace. A narrative of travels of the Amazon and rio Negro. New York: 1889 (2a. ed.)
Alfred Russel Wallace. Viagens pelos rios Amazonas e Negro. Trad. E. Amado. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: Universidade de São Paulo, 1979
George, W. B. Biologist Philosopher: A study of the life and writings of A. R. Wallace. Londres, 1964
Gheerbrant, Alain. The Amazon. Past, present and future. Paris. Gallimard, 1988
Bispo, A. A. "Biologistische Philosophie bei der Betrachtung der Musik Amazoniens". Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens: Stand und Aufgaben der Forschung IV: Zur Geschichte der Forschung. Anuário Musices Aptatio 2000/1. Roma/Siegburg 2001, 178-188
Glaubrecht, Matthias. Die ganze Welt ist eine Insel. Beobachtungen eines Evolutionsbiologen. Stuttgart: Hirzel, 2002
Glaubrecht, Matthias. Alfred Russel Wallace: Der ewige Zweite. 12/2002 GEO 133-156
De extraordinária importância para a história das ciências do século XIX foram as viagens de observação e pesquisas de estudiosos inglêses à Amazônia. O incremento dos interesses britânicos por essa região da América do Sul foi determinada por expectativas econômicas e pelas facilidades que os viajantes podiam contar devido à presença de comerciantes e empresas inglêsas em Belém e no interior do Amazonas. Os interesses políticos inglêses concentravam-se naturalmente nas Guianas e nas regiões fronteiriças do Brasil com essas regiões e com a Venezuela. Nada mais compreensível, portanto, que o aporte dos viajantes inglêses digam respeito sobretudo a essas regiões do Norte do Brasil, alcançadas através dos rios Amazonas e Negro. A história da etnologia das Guianas está estreitamente vinculada com os irmãos Robert Hermann (1804-1865) e Richard Schomburgk (1811-1891). Respectivamente diplomata e zoólogo, visitaram a Guiana Inglêsa comissionados pela Royal Geographic Society de Londres. A obra Description of British Guiana foi publicada em 1840 por Robert Hermann. Richard Schomburgk, que o acompanhara à Guiana e que seria, a partir de 1865, diretor do Jardim Botânico de Adelaide, sintetizou os principais resultados da viagem realizada entre 1840 e 1844. Para o Brasil, os principais cientistas britânicos que devem ser considerados são Alfred Russel Wallace, Henry Bates e Richard Bruce.
O naturalista britânico Alfred Russel Wallace (...) ocupa um lugar proeminente na história da observação e das idéias referentes ao índio e à cultura da região. Apesar de ter a sua atenção dirigida sobretudo à zoologia, deixou anotações de grande interesse para os estudos culturais e que devem ser vistas dentro do contexto das experiências e das convicções do autor como "biólogo-filósofo". Com A.R. Wallace, a consideração culturológica e histórico-etnomusicológica do Brasil inclui um dos mais renomados vultos das ciências naturais do século XIX, uma vez que foi êle que estabeleceu, em 1858, a teoria da seleção natural través da luta pela existência. Foi essa teoria que levou a C. Darwin a publicar as suas próprias pesquisas, apresentadas em comunicação sobre a origem das espécies na Linnean Society. Wallace, que desenvolveu também, juntamente com H. W. Bates, a teoria do mimetismo, ficou mundialmente conhecido pela sua divisão da terra em regiões segundo a geografia animal (1876), e se tornou um dos grandes divulgadores do Darwinismo. A. R. Wallace explorou o Amazonas e o Rio Negro de 1848 a 1852, viajando por regiões até então praticamente desconhecidas do Alto Rio Negro e do Uaupés. A narrativa de sua estadia, que inclui diversas referências a respeito da música, foi publicada primeiramente em 1853. Foi após o seu regresso que passou a refletir mais sistematicamente sobre o problema da origem das espécies, escrevendo, em 1855, um ensaio sobre a lei que teria regulado a introdução de novas espécies.
Pressupostos, imagem e realidade do Brasil
A vinda de A. R. Wallace ao Brasil foi motivada pelo seu desejo de visitar uma região tropical para contemplar e estudar a exuberância da vida animal e vegetal. O seu fascínio pela Amazônia foi despertado pela leitura de um relato de viagens sobre o Amazonas (Edward, A Voyage up the Amazon). O seu objetivo primordial era o de reunir coleções histórico-naturais. Desde o início, porém, impressionado pela mistura racial, teve o seu interesse dirigido ao estudo das raças humanas no seu relacionamento com o meio ambiente. Como relata no início de sua narrativa, teve inicialmente uma grande decepção, causada pelo contraste da imagem que tinha feito dos trópicos com base em descrições de viajantes que salientaram aspectos de exuberância perante o desleixo e a decadência, apatia e indolência da população. Essa impressão, porém, teria desaparecido ao constatar que várias dessas características seriam decorrentes das influências climáticas.
Impacto da música, canto de pássaros e natureza
Uma das primeiras marcantes impressões da sua estadia nos trópicos diz respeito à cultura musical. Uma ou duas semanas depois da sua chegada em Belém teve a oportunidade de assistir às novenas das festas do Espírito Santo e da Trindade, uma comemorada na catedral, outra em capela suburbana. A pompa das solenidades, os espetáculos pirotécnicos, as procissões e as características da organização das festas causaram em Wallace similares impressões experimentadas por outros viajantes britânicos. Assim, salienta na sua narrativa que música, barulho e foguetório seriam essenciais para os brasileiros. Wallace deixa entrever as concepções de natureza biologística que tinha a respeito da música nas suas observações concernentes ao canto dos pássaros. Com base nas suas observações, contesta a generalizada convicção de que os pássaros dos trópicos teriam uma pobreza canora proporcional ao esplendor de sua plumagem. Muitos dos coloridos pássaros tropicais pertenciam, de fato, à família ou grupos daqueles que não cantavam; entretanto, tendo escutado gorjeios semelhantes aos do melro e do pintarroxo, chegou à conclusão que os pássaros tropicais não eram menos musicais do que os pássaros europeus de plumagem de cores vivas. Um canto constituído de três ou quatro notas atraiu particularmente a sua atenção, soando-lhe doce e melancólico; alguns dos pios podiam até mesmo ser confundidos com palavras, por observadores de maior fantasia; quebravam a silenciosa monotonia da selva e produziam um agradável efeito.
Idéia da existência de princípios reguladores da variedade As observações de Wallace no Brasil foram condicionadas pelo roteiro de suas viagens. O seu caminho foi inicialmente condicionado pelas oportunidades que lhe ofereceram cidadãos de língua inglêsa que viviam e comerciavam na Amazônia. Assim, acompanhou, juntamente com Bates um comerciante de madeiras canadense à procura de reservas de cedro à beira do Tocantins. De retorno, visitou a ilha de Marajó, onde um súdito inglês possuia uma fazenda de gado, ali realizando estudos sobre as aves áquaticas. Essas primeiras experiências estão intimamente vinculadas com as idéias principais que caracterizariam a obra futura de Wallace. Se até então os historiadores naturais teriam salientado o poder de adaptação dos seres viventes aos alimentos e às peculiaridades das localidades, chegara a hora, segundo êle, de se constatar a necessária existência de uma série de princípios que regulavam a variedade infinita das formas de vida animal, pois seria estranho haver tantas aves e insetos pertencentes a diferentes grupos que consumiam o mesmo alimento e conviviam nas mesmas localidades.
Diferenças musicais entre africanos e índios na ilha de Marajó
É sob esse pano de fundo que devem ser consideradas as observações musicais feitas por Wallace na ilha de Marajó e que partiam de um contraste que sentia existir entre a exuberância dos negros e a apatia dos índios. "Em Mexiaa, à noite, os negros ficam em seus casebres tocando e cantando. Seu instrumento é uma espécie de viola primitiva, da qual tiram apenas 3 ou 4 notas, repetindo-as horas a fio, na mais enfadonha monotonia. Em cima dessa pobre melodia, improvisam uma letra, geralmente relacionada com os acontecimentos daquele dia. Os feitos dos brancos são os temas mais frequentes dessas canções. Nas noites de sábado, os trabalhadores tomam parte nos ofícios religiosos, realizados num comodo decorado à maneira de capela." (Viagens pelos rios Amazonas e Negro, op.cit. 68) Esses cantos faziam parte do ofício de vésperas. Todos participavam com grande fervor, conquanto segundo Wallace não compreendiam uma só palavra do que estavam respondendo.
(...)
Observação de cantos narrativos e esboços teóricos
Significativo é o relato de Wallace referente ao retorno de uma família que ira a Chaves em Marajó à procura de um padre para proceder ao batismo de uma criança. Naquela noite, cantando durante três horas, narraram toda a história da infrutífera viagem, segundo deduziu dos trechos que conseguiu compreender. Cada fato era transformado num verso, que todos depois repetiam por diversas vezes. Assim por exemplo, dizia o solista: "O padre estava doente e não podia vir (bis)", send repetido pelo coro. Depois a música continuou só com instrumentos, enquanto ficavam tentando lembrar-se de algum fato que pudesse ser transformado em refrão. Wallace compara essa letra com as trovas dos antigos bardos, que levavam a conhecimento do povo os fatos da época, transformando-os em letras de música. Numa nação guerreira, acaso haveria algo mais importante que o relato dos feitos de seus heróis a fim de excitar ao máximo o entusiasmo? Alguns desses fatos, transmitidos de geração em geração, teriam tendo a sua linguagem aperfeiçoada, até que alguém se lembrasse um dia de escrevê-los, acrescentando-lhes novas rimas e assim estruturando um poema épico.
Observações da escravidão no Brasil e idéias sobre a luta pela sobrevivência
Wallace tece considerações sobre a escravidão, argumentando também aqui segundo a tradição do pensamento inglês e que hoje surge como singular. Apesar de considerar a escravidão no Brasil como relativamente amena, questionava se seria correto conservar homens no estado de menoridade adulta e de despreocupada infantilidade. A responsabilidade e auto-determinação da idade adulta representariam elementos que suscitariam as mais excelsas demonstrações de força e energia. Seria a luta pela sobrevivência, a "batalha da vida" que exercitaria as faculdades morais e despertaria as latentes centelhas da genialidade. A infância seria a fase animal da existência humana, ao passo que a maioridade seria a intelectual.
Arte rupestre e observações de festas religiosas na região de Santarém
Wallace deixou Belém e arredores para ir a Santarém e Monte Alegre. Teve a possibilidade de observar inscrições em grutas, compostas de figuras diversas que representavam animais, jacarés e aves, utensílios domésticos, círculos e outras figuras geométricas, além de formas fantásticas e complexas. Em outras inscrições, encontrou círculos concêntricos que, segundo os nativos, representavam o Sol e a Lua, inscrições já conhecidas desde 1770. Wallace presenciou uma festa religiosa em Monte Alegre. O povo dançou e bebeu durante toda a noite e também no dia seguinte. O índio que para ele trabalhava era um executante de violino muito hábil. Após ter-se encontrado com Spruce, o botânico que chegara de Belém, partiu para Obidos. Em Serpa, presenciou também uma festa com procissão em torno da igreja. Atrás do padre vinham mulheres e meninas ataviadas de fitas e flores, dançando animadamente, de um modo que, para êle, nada tinha de religioso. À noite houve baile.
Observações de interesse para a história cultural de Manaus O relato de Wallace assume particular interesse para o estudo da presença indígena na história da futura capital do Amazonas, a então denominada Barra, uma localidade ainda pequena, com igrejas pobres, inferiores às de Santarém. A população local caracterizava-se pela mescla de indígenas provenientes de várias regiões e pela miscigenação entre portugueses e índios. Para Wallace, a sociedade civilizada local demonstrava ter costumes decadentes, misturando-se com a população indígena. Exceções eram os estrangeiros, entre os quais três alemães que cantavam muito bem e que lhe proporcionaram momentos agradáveis.
Observações de interesse etnomusicológico no Alto Rio Negro Outra notícia de natureza musical é a que dá da região do Alto Rio Negro. Em agosto de 1850, no vilarejo de São Pedro, apreciou o fato de um jovem negociante brasileiro, que sabia tocar um pouco de violão, ter executado algumas melodias simples nesse instrumento. O violão seria praticamente o único instrumento europeu utilizado nessa parte do país. De maior relevância etnológica são as observações de Wallace relativas à região do Uaupés. Entre elas, cumpre salientar a menção que faz de um batismo nesse rio, uma cerimônia impressionante que lembrava ritos de invocação de pajés. Wallace penetrou na área trilhada há 50 anos antes por Humbold em sentido inverso, alcançando San Carlos, a principal cidade venezuelana do Rio Negro e ponto extremo da viagem empreendida por aquele cientista. Nessa região escutou hinos religiosos cantados por jovens na igreja. Wallace presenciou algumas festas indígenas em Yavita, uma das grandes aldeias da região, com ca. 200 habitantes. Observou que os indígenas também aqui consumiam grandes quantidades de xirac, o mesmo caxiri dos brasileiros. Constatou o variado repertório de danças, para ele todas muito monótonas, apesar de seus curiosos passos e estranhas contorções. Essas danças tinham sido outrora muito difundidas entre os indígenas da região; já quase não eram praticadas, a não ser nessa aldeia. Wallace chegou a escrever ele próprio uma poesia, decantando a aldeia e seus habitantes. Nela menciona as vésperas dos sábados, o canto de domingo, comparando a vida comunitária local com a vida camponesa na Inglaterra. Também menciona as festas, nas quais homens e mulheres faziam roda e dançavaam quais crianças noite a dentro. Enquanto cantavam, percutiam os tambores e tocavam flautas feitas de bambu. Seus cantos, monótonos e estridentes, soavam ininterruptamente enquanto dançavam, horas a fio.
Esboços de teorias culturais a partir de observações no Rio Negro
Wallace salienta que o leitor não deveria julgar que pretendesse inverter os reais valores da cultura, julgando que os "primitivos" fossem superiores aos civilizados. Nem tampouco considerava-se como sendo um daqueles nostálgicos que queriam que a vida retrocedesse aos tempos dos ancestrais. O indígena nada saberia da cupidez, da ganância, das misérias, dos crimes, dos infortúnios, mas também não gozava dos prazeres que só a cultura poderia proporcionar, o gozo da contemplação de coisas belas produzidas por artistas, o encanto da leitura, a satisfação do saber. Ele também tinha visto no amor ao dinheiro a causa de todos os males; com o passar do tempo, porém, mudara de idéia. As observações etnográficas de Wallace relativas às aldeias que visitou na Venezuela indicam que encontrou indígenas em vários estágios de contacto com a sociedade cristã envolvente. Assim, assistiu a uma festa em Tomo, precedida pela preparação de abundante xirac e na qual os indígenas dançaram trinta horas sem interrupção. Os participantes da festa usavam roupas civilizadas e adornos indígenas, misturados de modo singular. Traziam calças limpas e camisas brancas ou listradas, ao mesmo tempo que cocares de penas, colares de contas e outros adereços, isso sem falar nas pinturas faciais. No todo, o conjunto dava uma impressão bizarra. Para completar, traziam redes sobre os ombros, enroladas como se fossem enormes écharpes, e marcavam o compasso com batidas de "uma espécie de cilindro ôco" no chão. Alguns participantes empunhavam lanças, arcos e varapaus, todos adornados de penas.
Descrição de festas em Marbitanas
Na descrição de Wallace, os indígenas mais conhecidos pelas suas festas teriam sido os habitantes de Marbitanas. Costumava-se dizer que passavam a metade de suas vidas em festas e a outra metade preparando-se para celebrá-las. O pesquisador ficou impressionado com o consumo de aguardente de cana ou de mandioca durante tais festas. Numa delas, enquanto permaneceu, constatou que já haviam bebido o conteúdo de um barril. Em todas as casas onde havia dança, três ou quatro pessoas ficavam andando pelos aposentos com um garrafa, distribuindo bebida sem cessar. O interessante, porém, é que tais festas sempre coincidiam com a celebração de um dia santificado da Igreja. Antes do dia festivo, com uma ou duas semanas de antecedência, um grupo de 10 ou 12 moradores saía de canoa pelos arredores para anunciar a realização da festa, visitando sítios e aldeias indígenas num raio de 50 a 100 milhas. Esse grupo levava consigo a imagem do santo, diversas bandeiras e alguns instrumentos musicais. O grupo era bem recebido em cada casa, e os moradores faziam questão de beijar o santo e dar algum presente para a comemoração, tais como ofertas do "porco de São João", frangos ao Divino Espírito Santo, etc.
Danças indígenas e comparações com a natureza Wallace não esconde a sua alegria ao encontrar indígenas que correspondiam à imagem que tinha dos "verdadeiros habitantes da floresta". Isso aconteceu ao subir o Uaupés pela primeira vez, quando visitou uma maloca num canal secundário daquele rio (Açai- Paraná). Em outra aldeia, - uma casa e duas malocas -, os moradores tinham ido a uma aldeia próxima onde se realizava uma festa, com danças e caxirí. Impressão extraordinária deixou-lhe a festa que observou na maloca grande em Ananá-Rapecuma, ou "Ponta do Abacaxí". Alguns dançavam e outros tocavam pífaros e apitos. A festa havia sido encerrada pela manhã e tanto os chefes como os maiorais já tinham tirado seus cocares. No entanto, como ainda não acabara o caxiri, rapazes e moças continuavam dançando. Todos os seus corpos estavam pintados com motivos geométricos regulares. Quase todas as moças que dançavam usavam um saiote curto feito de contas. Os homens monopolizavam os adornos, invertendo o costume dos países civilizados e imitando a natureza, onde os animais masculinos são aqueles que apresentam aparência mais bela. O selvagem aspecto desses indios, o bater dos pés e o chocalhar dos frutos secos, acompanhando a música e a dança, o zunzum das conversas numa língua estranha, a música dos pífaros, das flautas grandes e de outros instumentos feitos de bambu, de osso e de carapaça de tartaruga, a enorme cabana escura, tudo isso produziu um efeito indescritível em Wallace, totalmente diverso daquela que se podia obter de uma demonstração artificial de indígenas. Ficou feliz em poder ter presenciado uma comemoração indígena "realmente autêntica".
Apresentações de música e dança no Uaupés Wallace permaneceu nada menos do que uma semana em Jauaretê, a segunda aldeia mais considerável do Uaupés. Também aqui as festas se sucediam continuamente, com grande consumo de bebida fermentada de mandioca. Querendo assistir a danças indígenas, os habitantes da aldeia prepararam caxirí em sua homenagem e convidaram indígenas da vizinhanças.
Todo o grupo empenhou-se na realização dos preparativos e os convidados foram recebidos cerimoniosamente na maloca. As danças foram realizadas no salão, ou seja, no espaço desocupado entre as duas fileiras de colunas principais. Os dançarinos, em número de 15 ou 20, eram todos homens de meia idade. Formavam um semicírculo, cada um apoiando a mão esquerda no ombro direito do vizinho. Estavam ataviados com ornamentos plumários. Wallace registrou pormenorizadamente as vestimentas e os ornatos. Cada um trazia na mão uma lança, um feixe de flechas ou um maracá pintado. A dança consistia, na descrição de Wallace, num único passo para o lado, repetindo-se ininterruptamente, de modo que os dançarinos iam dando uma volta pelo salão. Os pés que batiam com força no chão, as maracas e os coquinhos presos às pernas que chocalhavam sem parar, o canto que parecia similar ao cantochão, de poucas palavras, repetidas em vozes graves, tudo criava um efeito animado e marcial. Em determinados momentos, as moças entraram na dança. Cada uma posicionava-se entre dois homens, abraçando-os pela cintura. Elas ficavam na roda por uma ou duas voltas, retirando-se todas a um só tempo. Os homens prosseguiam com a dança e elas ficavam sentadas nos banquinhos ou no chão.
Dança da serpente
Wallace presenciou e descreveu um dança que deveria tornar-se quase que um emblema da cultura dos povos indígenas do Amazonas para os leitores europeus: a dança da serpente. No terreiro da maloca, ao chegar, dançavam rapazes e meninos, estes sem os ornatos de gala. Daí a pouco, porém, mudaram de passo e começaram uma nova dança, cujo nome seria ou poderia ser "dança da serpente". Eles haviam feito previamente duas enormes cobras com ramos e folhas atadas com cipós, medindo de 30 a 40 pés de comprimento e cerca de 1 pé de diâmetro. Os jovens dividiram-se em dois grupos, de 20 a 15 participantes, e começaram a dançar, carregando a serpente apoiada nos ombros. A dança prosseguia de tal modo que a cobra parecia realmente colear, erguendo a cabeça e torcendo o rabo. Os rapazes iam e vinham, mantendo os dois grupos paralelos, enquanto se aproximavam cava vez mais da porta principal da maloca. Várias vezes as cobras chegaram a entrar com a cabeça no recinto, mas logo depois recuavam. Os que dançavam no salão fizeram uma pausa e ficaram observando as serpentes, que não cessavam de ameaçar de entrar na maloca. Aí, subitamente, os dois grupos dispararam a correr, entrando na maloca. Lá dentro, voltaram ao passo primitivo, aquele do vai-e-vem, mas sempre avançando mais do que recuavam. Por fim, quando completaram o semicírculo, os dois grupos se defrontaram. As serpentes assumiram atitudes de ataque, até que, de repente, os dois grupos arremeteram-se para a frente e passaram velozmente um pelo outro. Saíram pelo terreiro, e a dança terminou. Ouvia-se durante todo o tempo o contínuo murmúrio das conversas e o som de cerca de 50 flautas grandes e pequenas, continuamente tocadas. Cada qual executava uma melodia, produzindo uma balbúrdia que, para Wallace, nada tinha de harmoniosa. (...)
Observações do Jurupary, da "música do diabo" Wallace passou também vários dias entre os Ananases ou Abacaxís da aldeia situada à margem da cachoeira do Caruru, à montante de de Jauaretê. Foi alí que ouviu pela primeira vez o Jurupary, isto é, a "música do diabo". Isso aconteceu durante uma festa na qual se bebia o caxirí. Um pouco antes de escurecer, ouviu-se um som de "trombones" e "fagotes" que vinha do rio em direção à aldeia. Pouco tempo depois, surgiram oito índios tocando um certo instrumento muito parecido com um fagote de grande dimensão. Wallace observou que era tocado em pares, distinguindo quatro pares de diferentes tamanhos. Achou bem agradável o som que produziam, ainda que rude. Os instrumentos, tocados simultâneamente, com a mesma melodia, simples, deixavam perceber, para Wallace, que esses índios revelavam um gosto musical mais apurado do que aquele de todas as demais tribos visitadas pelo pesquisador. Os instrumentos eram feitos de cascas de árvores enroladas em espiral, com embocaduras de folhas. Dentro da maloca, à noite, dois velhos tocaram os dois instrumentos maiores, movendo-os de maneira curiosa, para cima e para baixo, de um lado para o outro, acompanhando esses movimentos com contorções corporais análogas. Por longo tempo tocaram a mesma melodia, acompanhando-se uns aos outros, de modo "harmonioso e correto". A partir do momento em que tais instrumentos começaram a soar, todas as mulheres desapareceram, velhas e jovens. A explicação desse fato residia numa "superstição" dos índios do Uaupés. As mulheres não podiam nem mesmo ver um desses instrumentos, sob pena de morte, em geral por envenenamento. Até pais já teriam executado as suas filhas, maridos as suas esposas. Por causa dessa regra, Wallace somente pôde adquirir exemplares desse instrumento sob a condição de que fossem embarcados longe da aldeia, fora da vista das mulheres. Estando mais familiarizado com os do Uaupés, Wallace entrou mais em pormenores a respeito das etnias da região, com descrições de suas festas e danças. Assim, um dos pontos relevantes de sua obra é aquele que diz respeito aos instrumentos musicais que formavam a "orquestra do Jurupary".que, segundo ele, compunha-se de 8 ou 12 instrumentos de sôpro que denomina de "cornetas" ou "trombetas", feitos de caules delgados de palmeiras, dotadas de orifícios. Alguns desses instrumentos possuiam embocaduras largas feitas de argila ou de folhas enroladas, assemelhando-se a embocaduras de cornetas. Cada par de instrumentos dava uma nota distinta, produzindo no conjunto um concerto harmonioso e agradável, lembrando às vezes uma orquestra de clarinetas e fagotes. Por causa do mistério que rodeava tais instrumentos, eram guardados em igarapé situado a alguma distância da maloca. Wallace colecionou vários instrumentos musicais, entre eles um pequeno tambor, oito trombetas grandes da Jurupary, diversas flautas, grandes e pequenas, feitas de bambu, flautas feitas de ossos de veado, apitos de crâneo de veado, instrumentos de percussão de cágados e tartarugas, etc. Foi lamentável para a etnologia o fato de Wallace ter perdido a sua coleção no incêndio do navio em que viajava. Em todo o caso, a sua viagem representou uma capítulo de extraordinária importância para a história dos conhecimentos relativos aos índios da Amazônia.
Concepções gerais relativas aos índios e comparações com o arquipélago malaio
Para ele, os índios do vale do Amazonas aparentavam ser superiores tanto física quanto intelectualmente àqueles do Sul do Brasil e à maior parte dos demais indígenas sul-americanos. Estariam muito mais próximos dos indígenas que habitavam as pradarias ocidentais da América do Sul. Corroborava, assim, a opinião do Príncipe Adalberto da Prússia, o primeiro viajante que entrou em contacto tanto com índios do Sul do Brasil como com povos da Amazônia. Além do mais, haveria uma clara distinção a ser feita entre os indígenas do interior da Amazônia e aqueles das vizinhanças de centros urbanos. A cultura civilizada não passaria, em todo o caso, de uma tintura leve e superficial; o índio civilizado nada mais seria do que um pobre diabo, abastardado e degenerado. Um dos fatos mais significativos dos trabalhos de Wallace foi a similaridade que constatou existir entre alguns de seus costumes e aqueles que conhecia de Bornéu e Nova Guiné. Entretanto, reconhecia que seria necessário que se dispusesse de um volume bem mais considerável de informações antes que se chegasse a conclusões no sentido de alguma remota conexão entre culturas tão distantes. Seria possível que tais similaridades representassem coincidências, ocorrências puramente acidentais, frutos da mesma necessidade atuando sobre homens submetidos a idênticas condições climatológicas e representantes de um mesmo estágio de incipiente civilização. Para o etnógrafo, aqui residiria uma área importante e vasta de estudos, de pesquisas e especulações.
O texto aqui publicado é apenas um das várias centenas de artigos colocados à disposição pela Organização Brasil-Europa na Internet. O sentido desses textos apenas pode ser entendido sob o pano de fundo do escopo da entidade. Pedimos ao leitor, assim, que se oriente segundo a estrutura da organização, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral: https://brasil-europa.eu Dessa página, o leitor poderá alcançar os demais ítens vinculados. Para os trabalhos recentes e em andamento, recomenda-se que se oriente segundo o índice da revista da organização: https://revista.brasil-europa.eu Salientamos que a Organização Brasil-Europa é exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. É a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro, supra-universitária e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações ou outras páginas da Internet que passaram a utilizar-se de denominações similares. Prezado leitor: apoie-nos neste trabalho que é realizado sem interesse financeiro por brasileiros e amigos do Brasil! Torne-se um dos muitos milhares que nos últimos anos visitaram frequentemente as nossas páginas. Entre em contato conosco e participe de nossos trabalhos: contato
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